martes, 27 de septiembre de 2011

Sexta Parte

III PARTE
CONDIÇÕES DO ADVENTO DA ESCOLA POSITIVA.
(Aliança dos proletários e dos filósofos)
CAPÍTULO I
INSTITUIÇÃO DE UM ENSINO POPULAR SUPERIOR
1o. – Correlações entre a propagação das noções positivas e as disposições do meio atual
57. De acordo com o conjunto das indicações precedentes, a superioridade espontânea da nova filosofia
sobre cada uma das que hoje disputam entre si o predomínio se acha agora tão plenamente caracterizada

sob o aspecto social, como o era já sob o ponto de vista social, tanto pelo menos quanto o comporta este
Discurso, e salvo a faculdade indispensável de recorrer à obra citada. Terminando esta sumária
apreciação, importa notar aqui a feliz correlação que se estabelece naturalmente entre semelhante espírito
filosófico e as disposições, sábias mas empíricas, que a experiência contemporânea faz de ora avante
prevalecer, mais é mais, tanto entre os governados como entre os governantes. Substituindo diretamente
uma estéril agitação política por um imenso movimento mental, a escola positiva explica e sanciona, em
virtude de um exame sistemático, a indiferença ou a repugnância que, em plena concordância, a razão
pública e a prudência dos governos manifestam hoje por toda séria elaboração direta das instituições
propriamente ditas. Na época atual, por falta de uma base racional suficiente e enquanto durar a anarquia
intelectual, elas não podem ter uma existência eficaz senão com um caráter puramente provisório ou
transitório. Destinada a dissipar enfim esta desordem fundamental, pelas únicas vias que a possam
dominar, esta nova escola carece, antes de tudo, da manutenção contínua da ordem material, tanto interna
como externa, sem a qual nenhuma grave meditação social poderia ser convenientemente acolhida ou
mesmo suficientemente elaborada. Ela tende, pois, a justificar e secundar a preocupação mui legítima
que hoje inspira por toda a parte o único grande resultado político imediatamente compatível com a
situação atual, a qual, além disso, lhe proporciona um valor especial pelas graves dificuldades que lhe
suscita, pondo sempre o problema, insolúvel com o decorrer do tempo, de manter uma certa ordem
política no meio de profunda desordem moral. Além dos seus trabalhos para o futuro, a escola positiva
associa-se imediatamente a esta importante operação por sua tendência direta a desacreditar radicalmente
as diversas escolas atuais, preenchendo, desde já, melhor do que cada uma delas, os ofícios opostos que
ainda lhes restam, e que só ela combina espontaneamente de modo a mostrar-se dentro em breve mais
orgânica do que a escola teológica e mais progressiva do que a escola metafísica, sem jamais poder
comportar os perigos de retrogradação ou de anarquia que lhes são respectivamente peculiares. Desde
que os governos renunciaram, embora de modo implícito, a toda restauração séria do passado e as
populações a toda grave destruição das instituições, a nova filosofia não tem mais a pedir a ambos senão
as disposições habituais que todos estão, no fundo, preparados para lhe conceder (pelo menos em França,
onde se deve realizar, em primeiro lugar, a elaboração sistemática), isto é, liberdade e atenção. Sob estas
condições naturais, tende a escola positiva, por um lado, a consolidar todos os poderes atuais nas mãos de
seus possuidores, quaisquer que sejam, e, por outro, a impor-lhes obrigações morais cada vez mais
conformes às verdadeiras necessidades dos povos.
58. Estas disposições incontestáveis parecem a princípio não dever deixar hoje à nova filosofia outros
obstáculos essenciais a não ser os provenientes da incapacidade ou da incúria dos seus diversos
promotores. Mas uma apreciação mais amadurecida mostra, ao contrário, que deve encontrar enérgicas
resistências da parte de quase todos os espíritos agora ativos, em virtude mesmo da difícil renovação que
ela deles exigiria para associá-los diretamente à sua principal elaboração. Se esta inevitável oposição
devesse limitar-se aos espíritos essencialmente teológicos ou metafísicos, ofereceria pequena gravidade
real, porque lhe restaria o poderoso apoio daqueles que se acham especialmente entregues aos estudos
positivos e cujo número e influência crescem diariamente. Mas, por uma fatalidade facilmente
explicável, é destes mesmos que a nova escola deve talvez esperar menos assistência e mais embaraços:
uma filosofia diretamente emanada das ciências há de achar provavelmente seus mais perigosos inimigos
entre aqueles que as cultivam hoje. A principal origem deste deplorável conflito consiste na
especialização cega e dispersiva que caracteriza profundamente o espírito científico atual, em virtude de
sua formação necessariamente parcial, conforme a complicação crescente dos fenômenos estudados,
como adiante o indicarei de modo expresso. Esta marcha provisória, que uma perigosa rotina acadêmica
se esforça hoje por eternizar, sobretudo entre os geômetras, desenvolve a verdadeira positividade, em

cada inteligência, somente em relação a uma pequena parte do sistema mental, e deixa todo o resto sob
um vago regime teológico-metafísico, ou o abandona a um empirismo ainda mais opressivo, de sorte que
o genuíno espírito positivo, que corresponde ao conjunto dos diversos trabalhos científicos, não pode, no
fundo, ser plenamente compreendido por nenhum daqueles que assim naturalmente o prepararam. Mais e
mais entregues a esta inevitável tendência, os cientistas propriamente ditos são ordinariamente
conduzidos em nosso século a uma invencível aversão a toda idéia geral e a uma completa
impossibilidade de realmente apreciar qualquer concepção filosófica. Sentir-se-á, aliás, melhor a
gravidade de semelhante oposição, observando que, oriunda dos hábitos mentais, estendeu-se em seguida
até os diversos interesses correspondentes, que nosso regime científico liga profundamente,
especialmente em França, a esta desastrosa especialidade, como o demonstrei com o maior cuidado na
obra citada. Assim, a nova filosofia, que exige diretamente o espírito de conjunto, e que faz prevalecer
para sempre a ciência nascente do desenvolvimento social sobre todos os estudos hoje constituídos, há de
encontrar profunda antipatia, a um tempo ativa e passiva, nos preconceitos e nas paixões da única classe
que lhe poderia oferecer diretamente um ponto de apoio especulativo e do qual não deve esperar durante
muito tempo senão simples adesões individuais, além de mais raras ai do que em qualquer outra parte.
(5)
2o. – Universalidade necessária deste ensino
59. Para vencer convenientemente este concurso espontâneo de resistências diversas que lhe apresenta
hoje a massa especulativa propriamente dita, a escola positiva não poderia achar outro recurso geral
senão organizar um apelo direto e contínuo ao bom-senso universal, esforçando-se daqui por diante em
propagar sistematicamente, na massa ativa, os principais estudos científicos próprios para aí constituírem
a base indispensável de sua grande elaboração filosófica. Estes estudos preliminares, naturalmente
dominados até aqui pelo espírito de especialidade empírica que preside às ciências correspondentes, são
sempre concebidos e dirigidos como se cada um deles devesse especialmente preparar para certa
profissão exclusiva, o que interdiz evidentemente a possibilidade, mesmo entre aqueles que tenham mais
lazer, de jamais abraçar vários deles, ou pelo menos tantos quantos o exija a formação ulterior de sãs
concepções gerais. Mas não pode mais ser assim, quando semelhante instrução é destinada de modo
direto à educação universal, que lhe muda necessariamente o caráter e a direção apesar de qualquer
tendência contrária. O público, com efeito, que não quer tornar-se nem geômetra, nem astrônomo, nem
químico, etc., experimenta continuamente a necessidade simultânea de todas as ciências fundamentais,
reduzidas, cada uma, às suas noções essenciais: ele precisa, segundo a expressão muito notável do nosso
grande Moliere, luzes acerca de tudo. Esta simultaneidade necessária não existe para o público apenas
quando considera esses estudos, em seu destino abstrato e geral, como única base racional do conjunto
das concepções humanas: ele a encontra ainda, embora menos diretamente, até nas diversas aplicações
concretas, cada uma das quais, no fundo, em vez de referir-se exclusivamente a determinado ramo da
filosofia natural, depende também, mais ou menos, de todos os outros. Assim, a universal propagação
dos principais estudos positivos não é somente destinada hoje a satisfazer uma necessidade já muito
pronunciada no público, que sente, mais e mais, não serem as ciências reservadas exclusivamente aos
sábios, existindo sobretudo para ele mesmo. Por uma feliz reação espontânea, semelhante destino,
quando for convenientemente desenvolvido, deverá melhorar por completo o espírito científico atual,
despojando-o de sua especialidade cega e dispersiva, para fazê-lo adquirir, pouco a pouco, o verdadeiro
caráter filosófico indispensável à sua principal missão. Este caminho é mesmo o único que possa, em
nossos dias, constituir gradualmente, fora da classe especulativa propriamente dita, um vasto tribunal
espontâneo, tão imparcial como irrecusável, formado pela massa dos homens sensatos, tribunal diante do

qual virão extinguir-se, de modo irrevogável, muitas opiniões científicas falsas, que as vistas peculiares à
elaboração preliminar dos dois últimos séculos misturaram profundamente às doutrinas verdadeiramente
positivas, que serão por elas submetidas ao bom senso universal. Numa época em que não se deve
esperar eficácia imediata senão de medidas sempre provisórias, bem adaptadas à nossa situação
transitória, a organização necessária de semelhante ponto de apoio geral para o conjunto dos trabalhos
filosóficos, constitui, aos meus olhos, o principal resultado social que possa produzir agora a inteira
vulgarização dos conhecimentos reais: o público prestará, assim, à nova escola serviços plenamente
equivalentes aos que esta organização há de proporcionar-lhe.
60. Este grande resultado não poderia ser satisfatoriamente obtido se semelhante ensino ininterrupto
fosse destinado a uma única classe, embora muito extensa: é preciso ter-se nele sempre em vista, sob
pena de aborto, a completa universalidade das inteligências. No estado normal, que este movimento deve
preparar, todas experimentarão sempre, sem nenhuma exceção, nem distinção, a mesma necessidade
fundamental desta filosofia primeira, que resultou do conjunto das noções reais, e deve tornar-se então a
base sistemática da sabedoria humana, tanto ativa como especulativa, a fim de preencher mais
convenientemente a indispensável missão social que dependia outrora da instrução cristã universal. É,
pois, muito importante que, desde a sua origem, a nova escola filosófica desenvolva, tanto quanto
possível, este grande caráter elementar de universalidade social, que, finalmente relativo ao seu principal
destino, constituirá hoje sua maior força contra as diversas resistências que deve encontrar.
3o. – Destino essencialmente popular deste ensino
61. A fim de assinalar melhor esta tendência necessária, uma íntima convicção, a princípio intuitiva,
depois sistemática, me determinou, há muito, a representar sempre o ensino exposto neste Tratado como
sendo dirigido principalmente à classe mais numerosa, que nossa situação deixa desprovida de toda
instrução regular, em conseqüência do desuso crescente da instrução puramente teológica que,
substituída provisoriamente, só para os letrados, por uma certa instrução metafísica e literária, não pôde
receber, sobretudo em França, nenhum equivalente análogo para a massa popular. A importância e a
novidade de semelhante disposição constante, meu vivo desejo de que seja convenientemente apreciada,
e mesmo, se ouso dizê-lo, imitada, obriga-me a indicar aqui os principais motivos deste contato especial
que a nova escola filosófica deve, assim, instituir hoje com os proletários, sem que todavia o seu ensino
exclua jamais qualquer outra classe. É fácil reconhecer, em geral, que quaisquer que sejam os obstáculos
que a falta de zelo ou de elevação possa realmente acarretar, de um e de outro lado, a tal aproximação, a
parte da sociedade atual que corresponde ao povo propriamente dito deve ser, no fundo, entre todas as
outras, a mais bem disposta, pelas tendências e necessidades que resultam de sua ação característica, a
acolher favoravelmente a nova filosofia, que deve enfim nela achar seu principal apoio, tanto mental
como social.
62. Uma primeira consideração que importa aprofundar, embora sua natureza seja sobretudo negativa,
resulta, a este respeito, de uma judiciosa apreciação do que, à primeira vista, parece apresentar grave
dificuldade, isto é, a ausência atual de toda cultura especulativa. Sem dúvida é lamentável, por exemplo,
que este ensino popular de filosofia astronômica ainda não encontre entre todos aos quais especialmente
se destina, alguns conhecimentos matemáticos preliminares, que haviam de torná-lo ao mesmo tempo
mais eficaz e mais fácil e cuja existência sou mesmo forçado a supor. Mas a mesma lacuna se encontraria
também na maior parte das outras classes atuais, nesta época em que a instrução positiva se acha
limitada, em França, a certas profissões especiais que se ligam essencialmente à Escola Politécnica ou às
escolas de medicina. Não é, portanto, isso uma falha verdadeiramente peculiar aos nossos proletários.

Quanto a lhes faltar habitualmente esta espécie de cultura regular que as classes letradas hoje recebem,
não temo cair em exagero filosófico, afirmando resultar daí, para os espíritos populares, notável
vantagem, em vez de real inconveniente. Sem voltar aqui a uma crítica infelizmente demasiado fácil,
assaz elaborada desde muito tempo e que experiência diária confirma, cada vez mais, aos olhos da maior
parte dos homens sensatos, seria difícil conceber agora uma preparação mais irracional e, no fundo, mais
perigosa à conduta ordinária da vida real, quer ativa, quer mesmo especulativa, do que a resultante desta
vã, instrução, composta primeiro de palavras, depois de entidades, onde se perdem ainda tantos anos
preciosos de nossa juventude. À maior parte daqueles que a recebem, ela não inspira, de ora avante,
senão um desgosto quase insuperável relativamente a qualquer trabalho intelectual, durante toda a
duração de sua carreira. Seus perigos tornam-se, porém, muito mais graves para aqueles que a ela se
entregam mais especialmente. A inaptidão para a vida real, o desdém pelas profissões vulgares, a
incapacidade de convenientemente apreciar qualquer concepção positiva, e a antipatia que daí logo
resulta, freqüentemente os dispõe hoje a secundar estéril agitação metafísica que inquietas pretensões
pessoais, desenvolvidas por essa desastrosa educação, não tardam a tornar politicamente perturbadora,
sob a influência direta de viciosa erudição histórica, que, fazendo prevalecer uma falsa noção do tipo
social peculiar à antigüidade, comumente impede compreender a sociabilidade moderna. Considerando
que quase todos os que, a diversos respeitos, dirigem os negócios humanos, foram para tal fim assim
preparados, não nos pode causar surpresa a vergonhosa ignorância que amiúde manifestam sobre os
assuntos mais insignificantes, mesmo materiais, nem sua freqüente disposição a desprezar o fundo pela
forma, colocando acima de tudo a arte de bem dizer, por mais contraditória ou perniciosa que se torne a
sua aplicação, nem também nos pode surpreender a tendência especial das nossas classes letradas a
acolher avidamente todas as aberrações que diariamente surjam de nossa anarquia mental. Semelhante
apreciação dispõe-nos, ao revés, a admirar que esses diversos desastres não sejam ordinariamente mais
extensos; conduz-nos também a admirar profundamente a retidão e a sabedoria naturais do homem, que
sob o feliz impulso peculiar ao conjunto de nossa civilização, neutraliza espontaneamente, em grande
parte, essas perigosas conseqüências de um absurdo sistema de educação geral. Tendo sido este sistema,
desde o fim da Idade Média, como o é ainda, o principal ponto de apoio social do espírito metafísico,
quer primeiro contra a Teologia, quer, em seguida, também contra a ciência, concebe-se facilmente que
as classes que não pôde envolver, devem achar-se por isto mesmo muito menos afetadas por essa
filosofia transitória e desde então mais bem dispostas ao estado positivo. Ora, tal é a importante
vantagem que a ausência de educação escolástica proporciona hoje aos nossos proletários e os torna, no
fundo, menos acessíveis do que a maior parte dos letrados aos diversos sofismas perturbadores, de
conformidade com a experiência diária, apesar de contínua excitação, sistematicamente dirigida às
paixões relativas à sua condição social. Eles deveriam ser outrora dominados a fundo pela teologia
especialmente católica; mas, durante sua emancipação mental (havendo a Metafísica apenas deslizado
sobre eles, por não ter neles encontrado a cultura especial sobre a qual ela repousa) só a filosofia positiva
poderá, de novo, deles apoderar-se radicalmente. As condições preliminares, tão recomendadas pelos
primeiros pais desta filosofia final, devem achar-se aí mais bem preenchidas do que em qualquer outra
parte: se a célebre tábua rasa de Bacon e de Descartes fosse jamais plenamente realizável, seria por certo
entre os proletários atuais que, principalmente em França, estão muito mais próximos do que qualquer
outra classe do tipo ideal dessa disposição preparatória para a positividade racional.
63. Examinando sob um aspecto mais íntimo e mais duradouro esta inclinação natural das inteligências
populares para a sã filosofia, reconhece-se facilmente que ela deve resultar da solidariedade fundamental
que, segundo as nossas explicações anteriores, liga diretamente o verdadeiro espírito filosófico ao bom
senso universal, sua primeira fonte necessária. Este bom senso, com efeito, tão justamente preconizado

por Descartes e por Bacon, deve achar-se hoje mais puro e mais enérgico entre as classes inferiores, em
virtude mesmo desta feliz falta de cultura escolástica que as torna menos acessíveis aos hábitos vagos ou
sofísticos; mas a esta diferença passageira, que será gradualmente dissipada por melhor educação das
classes letradas, é preciso juntar uma outra, necessariamente permanente, relativa à influência mental das
diversas funções sociais peculiares às duas ordens de inteligências, conforme o caráter respectivo de seus
trabalhos habituais. Desde que a ação real da Humanidade sobre o mundo exterior começou a
organizar-se espontaneamente entre os modernos, exigiu a combinação contínua de duas classes distintas,
muito desiguais em número, mas igualmente indispensáveis: de um lado os empresários propriamente
ditos, sempre pouco numerosos que, possuindo os diversos materiais convenientes, entre os quais o
dinheiro e o crédito, dirigem o conjunto de cada operação, assumindo desde então a principal
responsabilidade de quaisquer resultados; de outro lado os operadores diretos, vivendo de um salário
periódico e formando a imensa maioria dos trabalhadores que executam, com uma espécie de intenção
abstrata, os diversos atos elementares, sem se preocuparem especialmente com o seu concurso final.
Estes últimos são os únicos a entrar em ação imediata sobre a natureza, ao passo que os primeiros lidam
principalmente com a sociedade. Como conseqüência necessária destas diversidades fundamentais, a
eficácia especulativa que reconhecemos inerente à vida industrial para desenvolver, de modo
involuntário o espírito positivo deve em geral fazer-se sentir melhor entre os operadores do que entre os
empresários; porque seus trabalhos próprios oferecem um caráter mais simples, um fim, mais
nitidamente determinado, resultados mais próximos e condições mais imperiosas. A escola positiva
deverá, pois, achar neles naturalmente um acesso mais fácil para o seu ensino universal e uma simpatia
mais viva pela sua renovação filosófica, quando puder convenientemente penetrar nesse vasto meio
social. Há de encontrar aí, ao mesmo tempo, afinidades morais não menos preciosas do que estas
harmonias mentais, em conseqüência do comum desinteresse material que espontaneamente aproxima
nossos proletários da verdadeira classe contemplativa, pelo menos quando esta houver adquirido enfim
os costumes correspondentes ao seu destino social. Esta feliz disposição, tão favorável à ordem universal
como à verdadeira felicidade pessoal, há de granjear um dia grande importância normal, em virtude da
sistematização das relações gerais que devem existir entre estes dois elementos extremos da sociedade
positiva. Mas desde já ela pode facilitar essencialmente sua união nascente, aproveitando a pouca folga
que as ocupações diárias deixam aos nossos proletários para sua instrução especulativa. Se, em alguns
casos excepcionais de extrema sobrecarga, esse contínuo obstáculo parece, com efeito, dever impedir
todo desenvolvimento mental, ele é ordinariamente compensado por este caráter de judiciosa
imprevidência que, em cada interrupção natural dos trabalhos obrigatórios, concede ao espírito uma
plena disponibilidade. O verdadeiro lazer não deve faltar habitualmente senão à classe que acredita
possuí-lo especialmente; porque, em razão mesmo de sua riqueza e de sua posição, ela se acha
comumente preocupada por ativas inquietações, que jamais comportam verdadeira calma intelectual e
moral. Este estado deve ser fácil, ao revés, quer aos pensadores, quer aos operários, em virtude de sua
comum isenção espontânea dos cuidados relativos ao emprego dos capitais, sem falar na regularidade
natural da sua vida diária.
64. É, pois, entre os proletários, logo que estas tendências mentais e morais tiverem convenientemente
atuado, que se há de realizar, com mais eficácia, a universal propagação do ensino positivo, condição
indispensável ao termo gradual da renovação filosófica. É também entre eles que o caráter contínuo de
semelhante estudo poderá tornar-se mais puramente especulativo, porque se achará aí mais isento das
vistas interessadas que lhe aplicam, mais ou menos diretamente, as classes superiores, quase sempre
preocupadas com cálculos ávidos ou ambiciosos. Depois de haver procurado neste estudo o fundamento
universal de toda a sabedoria humana, eles virão haurir ,nele, como nas belas-artes, agradável diversão

habitual ao conjunto de suas fadigas diárias. Devendo sua inevitável condição social tornar-lhes muito
mais preciosa semelhante diversão, quer científica, quer estética, seria estranho que as classes dirigentes
quisessem ver nisso, ao revés, um motivo fundamental para os conservar privados dela, recusando-lhes
sistematicamente a única satisfação que possa ser concedida de modo indefinido àqueles mesmos que
devem renunciar criteriosamente aos gozos menos suscetíveis de uma participação comum. Para
justificar semelhante recusa, amiúde ditada pelo egoísmo e pela irreflexão, objeta-se algumas vezes, é
verdade, que esta vulgarização especulativa tenderia a agravar profundamente a desordem
contemporânea por desenvolver a funesta disposição, já muito pronunciada, à universal mudança de
classes. Mas este temor natural, única objeção séria que, a semelhante respeito, mereça uma verdadeira
discussão, resulta hoje, na maioria dos casos em que há boa-fé, de irracional confusão da instrução
positiva, a um tempo estética e científica, com a instrução metafísica e literária, única atualmente
organizada. Esta, que já reconhecemos exercer, de fato, uma ação social muito perturbadora sobre as
classes letradas, tornar-se-ia muito mais perigosa se a estendêssemos aos proletários, nos quais
desenvolveria, além do desgosto pelas ocupações materiais, exorbitantes ambições. Mas, felizmente, eles
em geral estão ainda menos dispostos a pedi-la do que as classes dirigentes a concedê-la. Os estudos
positivos, porém, sabiamente concebidos e convenientemente dirigidos, de maneira alguma comportam
semelhante influência: aliando-se e aplicando-se, por sua natureza, a todos os trabalhos práticos, tendem,
pelo contrário, a confirmar ou mesmo a inspirar o gosto por eles, seja enobrecendo-lhes o caráter
habitual, seja amenizando-lhes as penosas conseqüências. Conduzindo, além disto, a sã apreciação das
diversas posições sociais e das necessidades correspondentes, os estudos positivos dispõem a sentir que a
felicidade real é compatível com quaisquer condições, contanto que sejam honrosamente preenchidas e
razoavelmente aceitas. A filosofia geral que resulta desses estudos representa o homem, ou antes a
Humanidade, como o primeiro entre os seres conhecidos, destinado, pelo conjunto das leis reais, a
aperfeiçoar sempre, tanto quanto possível, e a todos os respeitos, a ordem natural, ao abrigo de toda
inquietação quimérica, o que tende a exaltar, em alto grau, o ativo sentimento universal da dignidade
humana. Ao mesmo tempo ela modera espontaneamente o orgulho demasiadamente exaltado que esse
sentimento poderia suscitar, mostrando, sob todos os aspectos, e com familiar evidência, quanto devemos
ficar continuamente abaixo do fim e do tipo assim caracterizados, quer na vida ativa, quer mesmo na vida
especulativa, onde se sente quase a cada passo que nossos mais sublimes esforços não podem nunca
vencer senão fraca porção das dificuldades fundamentais.
65. Apesar da alta importância dos diversos motivos precedentes, considerações ainda mais poderosas,
oriundas das necessidades coletivas peculiares à condição social dos proletários, hão de determinar as
inteligências populares, movidas pelo seu ardor contínuo relativo à universal propagação dos estudos
reais, a secundar hoje a ação filosófica da escola positiva. Semelhantes considerações podem ser assim
resumidas: não pôde até aqui existir uma política especialmente popular e só a nova filosofia pode
constituí-la.
CAPÍTULO. II
INSTITUIÇÃO DE UMA POLÍTICA ESPECIALMENTE POPULAR
1o. – A política popular, sempre social, deve tornar-se sobretudo moral
66. Desde o começo da grande crise moderna o povo não interveio ainda nas principais lutas políticas
senão como simples auxiliar, com a esperança, sem dúvida, de obter, assim, alguns melhoramentos de
sua situação geral, mas não segundo vistas e objetivos que lhe fossem realmente próprios. Todos os

debates habituais ficaram essencialmente concentrados nas diversas classes superiores ou médias, porque
se referiam sobretudo à posse do poder. Ora, o povo não podia, durante muito tempo, interessar-se
diretamente por tais conflitos, pois a natureza de nossa civilização impede que os operários esperem e
mesmo desejem qualquer participação importante no poder político propriamente dito. Também, depois
de haverem essencialmente obtido todos os resultados sociais que podiam esperar da substituição
provisória dos metafísicos e dos legistas à antiga preponderância política das classes sacerdotais e
feudais, tornam-se eles hoje mais e mais indiferentes ao estéril prolongamento dessas lutas cada vez mais
miseráveis, de ora avante reduzidas a vãs rivalidades pessoais. Quaisquer que sejam os esforços diários
da agitação metafísica para fazê-los intervir nesses frívolos debates, pelo engodo dos chamados direitos
políticos, o instinto popular já compreendeu, especialmente em França, quanto seria ilusória ou pueril a
posse de semelhante privilégio, que, mesmo no seu grau atual de disseminação, não inspira
habitualmente nenhum interesse verdadeiro à maior parte daqueles que o gozam com exclusividade. O
povo não pode interessar-se essencialmente senão pelo emprego efetivo do poder, quaisquer que sejam as
mãos em que resida, e não pela sua conquista especial. Logo que as questões políticas, ou, antes, daqui
por diante, sociais, se referirem ordinariamente à maneira pela qual o poder deve ser exercido para atingir
melhor seu destino geral, sobretudo relativo, entre os modernos, à massa proletária, não se tardará a
reconhecer que o desdém atual não é de modo algum o resultado de uma perigosa indiferença: até lá a
opinião popular ficará estranha a esses debates, que aumentando, aos olhos dos bons espíritos, a
instabilidade de todos os poderes, tendem especialmente a retardar essa indispensável transformação. Em
uma palavra, o povo está, naturalmente disposto a desejar que a vã e tempestuosa discussão dos direitos
seja, enfim, substituída por fecunda e salutar apreciação dos diversos deveres essenciais, quer gerais,
quer especiais. Tal é o princípio espontâneo da íntima conexidade, que, sentida cedo ou tarde, há de
necessariamente ligar o instinto popular à ação social da filosofia positiva; porque esta grande
transformação, acima motivada pelas mais altas considerações especulativas, eqüivale evidentemente à
do movimento político em simples movimento filosófico, cujo primeiro e principal resultado social
consistirá, com efeito, em estabelecer solidamente uma ativa moral universal, que prescreva a cada
agente, individual ou coletivo, regras de proceder mais conformes à, harmonia fundamental. Quanto mais
se meditar sobre esta relação natural, mais se reconhecerá que essa mudança decisiva, que só podia
emanar do espírito positivo, não pode encontrar hoje sólido apoio senão no povo propriamente dito,
único disposto a bem compreendê-lo e por ele profundamente interessar-se. Os preconceitos e as paixões
peculiares às classes superiores ou médias impedem que elas sintam logo suficientemente tal
transformação, porque devem habitualmente preocupar-se mais com as vantagens peculiares à posse do
poder do que com os perigos resultantes do seu vicioso exercício. Se o povo é hoje e deve, de ora avante,
permanecer indiferente à posse direta do poder político, não pode nunca renunciar à sua indispensável
participação contínua no poder moral, que, único verdadeiramente acessível a todos, sem nenhum perigo
para a ordem universal, antes de grande vantagem quotidiana para ela, autoriza cada um a lembrar
convenientemente aos mais altos poderes o cumprimento de seus diversos deveres essenciais, em nome
de uma doutrina fundamental comum. Na verdade, os preconceitos inerentes ao estado transitório ou
revolucionário acharam também alguma acolhida entre os nossos proletários; entretêm neles, de fato,
ilusões prejudiciais sobre o alcance indefinido das medidas políticas propriamente ditas e impedem que
apreciem quanto a justa satisfação dos grandes interesses populares depende hoje mais das opiniões e dos
costumes do que das próprias instituições, cuja verdadeira regeneração, atualmente impossível, exige
antes de tudo a reorganização espiritual. Mas podemos assegurar que a escola positiva terá muito mais
facilidade em fazer penetrar este salutar ensino nos espíritos populares do que em quaisquer outros,. seja
porque .a metafísica negativa não pôde enraizar-se tanto neles, seja sobretudo pelo impulso constante das
necessidades sociais peculiares à sua situação necessária. Estas necessidades se referem essencialmente a

duas condições fundamentais, uma espiritual, outra temporal, de natureza profundamente conexa:
trata-se, com efeito, de assegurar de modo conveniente, a todos, primeiro a educação normal, em seguida
o trabalho regular; tal é, no fundo, o verdadeiro programa social dos proletários. Não pode mais haver
verdadeira popularidade senão para a política que necessariamente tender para esse duplo destino. Ora,
tal é evidentemente o caráter espontâneo da doutrina social própria à nova escola filosófica; nossas
explicações anteriores devem dispensar aqui, a este respeito, qualquer outro esclarecimento, aliás
reservado ao trabalho tão freqüentemente indicado neste Discurso. Importa somente acrescentar, sobre
este assunto, que a concentração de nossos pensamentos e de nossa atividade sobre a vida real da
Humanidade, afastando toda vã ilusão, há de tender especialmente a tornar muito mais forte a adesão
moral e política do povo propriamente dito à verdadeira filosofia moderna. Com efeito o seu judicioso
instinto logo perceberá nesta um novo e poderoso motivo de dirigir sobretudo a prática social para o
criterioso e contínuo melhoramento da sua própria condição geral. Ao contrário, as quiméricas
esperanças inerentes à antiga filosofia teológica conduziram demasiadas vezes a desdenhar tais
progressos ou afastá-los por uma espécie de adiamento contínuo, em virtude da mínima importância
relativa que naturalmente devia deixar-lhes essa eterna perspectiva, imensa compensação espontânea de
quaisquer misérias.
2o. – Natureza da participação do governo na propagação das noções positivas
67. Esta, sumária apreciação basta agora para assinalar, sob os diversos aspectos essenciais, a afinidade
necessária das classes inferiores relativamente à filosofia positiva, a qual, logo que o contato puder
plenamente estabelecer-se, nelas achará seu principal apoio natural, a um tempo mental e social,
enquanto a filosofia teológica não convém mais senão às classes superiores, cuja preponderância política
ela tende a eternizar, assim como a filosofia metafísica se dirige sobretudo às classes médias, cuja ativa
ambição secunda. Todo espírito meditativo deve assim acabar por compreender a importância
verdadeiramente fundamental que apresenta hoje uma criteriosa divulgação sistemática dos estudos
positivos, destinada essencialmente aos proletários, a fim de preparar entre eles uma sã doutrina social.
Os diversos observadores que se podem libertar, mesmo momentaneamente, do turbilhão diário,
concordam agora em deplorar, e certamente com muita razão, a anárquica influência que os sofistas e
retóricos exercem em nossos dias. Mas essas justas queixas serão inevitavelmente vãs até que se sinta
melhor a necessidade de sair enfim de uma situação mental onde a educação oficial não pode terminar
ordinariamente senão por formar sofistas e retóricos, que tendem, em seguida, através do tríplice ensino
emanado dos jornais, dos romances e dos dramas, a propagar o mesmo espírito entre as classes inferiores,
que a nenhuma instrução regular garante do contágio metafísico, repelido somente pela sua razão natural.
Embora se deva esperar, a este título, que os governos atuais perceberão logo quanto a universal
propagação dos conhecimentos reais pode secundar cada vez mais seus esforços contínuos para a
manutenção da ordem indispensável, não devemos contudo esperar deles, nem mesmo desejar, uma
cooperação verdadeiramente ativa nesta grande preparação racional, que deve por muito tempo resultar
especialmente do zelo privado e livre, inspirado e sustentado por genuínas convicções filosóficas. A
imperfeita observação de uma grosseira harmonia política, sempre comprometida no meio de nossa
desordem mental e moral, mui justamente absorve sua solicitude diária e mantém os governos atuais num
ponto de vista demasiado inferior para que dignamente possam compreender a natureza e as condições de
semelhante trabalho, cuja importância devemos pedir apenas que entrevejam. Se, por um zelo
intempestivo, tentassem dirigi-lo hoje, sem o ligarem a uma filosofia bastante decisiva, só conseguiriam
alterá-los profundamente, comprometendo-lhe a eficácia e fazendo-o degenerar logo em incoerente
acúmulo de especialidades superficiais. Assim a escola positiva, que resultou de ativo e voluntário

concurso dos espíritos verdadeiramente filosóficos, não terá durante muito tempo que pedir aos nossos
governos ocidentais, para convenientemente desempenhar a sua grande missão social, senão a plena
liberdade de exposição e de discussão, equivalente a de que já gozam a escola teológica e a metafísica.
Uma pode todos os dias, nas suas mil tribunas sagradas, preconizar, à sua vontade, a excelência absoluta
de sua eterna doutrina e votar todos os seus adversários a uma irrevogável danação; a outra, em suas
numerosas cátedras, que a munificência nacional lhe sustenta, pode diariamente desenvolver, diante de
imensos auditórios, a eficácia universal de suas concepções ontológicas e a preeminência indefinida de
seus estudos literários. Sem pretender tais vantagens, que só o tempo deve proporcionar, a escola positiva
pede apenas o simples direito de asilo regular nos edifícios municipais, para aí fazer diretamente apreciar
sua aptidão final a satisfazer simultaneamente todas as nossas grandes necessidades sociais, propagando,
com sabedoria, a única instrução sistemática que possa de ora em diante preparar uma verdadeira
reorganização, primeiro mental, depois moral, e enfim política. Contanto que este livre acesso lhe seja
sempre garantido, o zelo voluntário e gratuito de seus raros promotores será secundado pelo bom senso
universal, e, sob o impulso crescente da situação fundamental, jamais temerá sustentar, mesmo a partir
deste momento, uma ativa concorrência filosófica relativamente aos muitos e poderosos órgãos, mesmo
reunidos, das duas escolas antigas. Ora, não se deve temer mais que, de agora em diante, os homens de
Estado se afastem gravemente, neste sentido, da imparcial moderação inerente à sua própria indiferença
especulativa: a escola positiva tem mesmo razão para contar, sob este aspecto, com a benevolência
habitual dos mais inteligentes dentre eles, não somente em França, mas em todo o nosso Ocidente. A sua
contínua vigilância sobre este ensino livre e popular, se limitará logo a prescrever-lhe apenas a
permanente condição de uma genuína positividade, afastando dele, com inflexível severidade, a
introdução, demasiado iminente ainda, das especulações vagas ou sofísticas. Mas, a este respeito, as
necessidades eventuais da escola positiva estão diretamente de acordo com os deveres naturais dos
governos; porque, se estes devem repelir tal abuso em virtude de sua tendência anárquica, aquela, além
deste justo motivo, o julga plenamente contrário ao destino fundamental de semelhante ensino, por
alentar esse mesmo espírito metafísico, onde ela hoje enxerga o principal obstáculo ao advento da nova
filosofia. Sob este aspecto, como a qualquer outro titulo, os filósofos positivos se sentirão sempre quase
tão interessados quanto os poderes atuais, na dupla manutenção contínua da ordem interior e da paz
exterior, porque nela vêem a condição mais favorável à verdadeira renovação mental e moral: somente,
do ponto de vista que lhes é próprio, eles devem perceber de mais longe o que poderia comprometer ou
consolidar esse grande resultado político do conjunto de nossa situação transitória.
CAPÍTULO III
ORDEM NECESSÁRIA DOS ESTUDOS POSITIVOS
68. Caracterizamos agora suficientemente, a todos os respeitos, a importância capital que hoje apresenta
a universal propagação dos estudos positivos, sobretudo entre os proletários, para constituírem de ora
avante indispensável ponto de apoio, mental e social, à elaboração filosófica que gradualmente deve
determinar a reorganização espiritual das sociedades modernas. Semelhante apreciação ficaria, porém,
incompleta e mesmo insuficiente, se a parte final deste Discurso não fosse diretamente consagrada a
estabelecer a ordem fundamental que convém a essa série de estudos, de maneira a fixar a verdadeira
posição, que deve ocupar, em seu conjunto, aquele que será em seguida o objeto exclusivo deste Tratado.
Longe de ser este arranjo didático quase indiferente, como o nosso vicioso regime científico muitas vezes
o faz supor, podemos assegurar, pelo contrário, que é dele sobretudo que depende a principal eficácia,
intelectual ou social, desta grande preparação. Existe, além disto, íntima solidariedade entre a concepção
enciclopédica donde resulta esse estudo e a lei fundamental da evolução que serve de base à nova

filosofia geral.
1o. – Lei da classificação
69. Semelhante ordem deve, por sua natureza, preencher duas condições essenciais, uma dogmática,
outra histórica, cuja convergência necessária cumpre desde logo reconhecer: a primeira consiste em
ordenar as ciências segundo sua dependência sucessiva, de sorte que cada uma repousa sobre a
precedente e prepara a seguinte; a segunda manda dispô-las de acordo com a marcha de sua formação
efetiva, passando sempre das mais antigas às mais recentes. Ora, a equivalência espontânea destas duas
vias enciclopédicas resulta, em geral, da identidade fundamental que existe inevitavelmente entre a
evolução individual e a evolução coletiva, as quais, tendo igual origem, destino semelhante e um mesmo
agente, devem sempre oferecer fases correspondentes, salvo as únicas diversidades de duração, de
intensidade e de velocidade, inerentes à desigualdade dos dois organismos. Tal concurso necessário
permite, pois, conceber estes dois modos como dois aspectos correlatos de um mesmo princípio
enciclopédico, de modo que se possa empregar habitualmente aquele que, em cada caso, melhor
manifestar as relações consideradas, e com a preciosa faculdade de poder constantemente verificar por
um o que tiver resultado do outro,
70. A lei fundamental dessa ordem comum, de dependência dogmática e de sucessão histórica, foi
completamente estabelecida na grande obra já citada e cujo plano geral ela determina. Consiste em
classificar as ciências de acordo com a natureza dos fenômenos estudados, segundo sua generalidade e
sua independência decrescentes, ou sua complicação crescente, donde resultam . especulações cada vez
mais abstratas e mais difíceis, mas também cada vez mais eminentes e completas, em virtude de sua
relação mais intima com o homem, ou antes com a Humanidade, objeto final de todo o sistema teórico.
Esta classificação tira o seu principal valor filosófico, tanto científico como lógico, da identidade
constante e necessária que existe entre todos estes diversos modos de comparação especulativa dos
fenômenos naturais, e donde resultam outros tantos teoremas enciclopédicos, cuja explicação e uso
pertencem à obra citada, que, além disto, sob o ponto de vista ativo, lhe acrescenta esta importante
relação geral: que os fenômenos, segundo a ordem de classificação, se tornam cada vez mais
modificáveis, e assim oferecem um campo gradativamente mais vasto à intervenção humana. Basta
indicar aqui de modo sumário a aplicação deste grande princípio à determinação racional da verdadeira
hierarquia dos estudos fundamentais, diretamente concebidos de ora avante como os diferentes elementos
essenciais de uma ciência única, a da Humanidade
2o. – Lei enciclopédica ou hierarquia das ciências
71. Este objeto final de todas as nossas especulações reais exige evidentemente, por sua natureza, ao
mesmo tempo científica e lógica, duplo preâmbulo indispensável, relativo, de um lado, ao homem
propriamente dito, de outro, ao mundo exterior. E, de fato, não poderiam os fenômenos, estáticos ou
dinâmicos, da sociabiidade ser estudados racionalmente se não fossem primeiro conhecidos o agente
especial que os opera e o meio geral onde se realizam. Daí resulta, pois, a divisão necessária da filosofia
natural, destinada a preparar a filosofia social, em dois grandes ramos, um orgânico, outro inorgânico.
Quanto à disposição relativa destes dois estudos igualmente fundamentais, todos os motivos essenciais,
quer científicos, quer lógicos, concorrem para prescrever, na educação individual e na evolução coletiva,
que se comece pelo segundo, cujos fenômenos mais simples e mais independentes, em razão de sua
generalidade superior, são os únicos a comportar desde logo uma apreciação verdadeiramente positiva,
enquanto suas leis, diretamente relativas à existência universal, exercem em seguida uma influência

necessária sobre a existência especial dos corpos vivos. A Astronomia constitui necessariamente, a todos
os respeitos, o elemento mais decisivo desta teoria preliminar do mundo exterior, quer por ser mais
suscetível de plena positividade, quer na medida em que caracteriza o meio geral de quaisquer de nossos
fenômenos, e ainda por manifestar, sem nenhuma outra complicação, a simples existência matemática,
isto é, geométrica ou mecânica, comum a todos os seres reais. Mesmo, porém, quando condensássemos o
mais possível as verdadeiras concepções enciclopédicas, não poderíamos reduzir a filosofia inorgânica a
este elemento principal, porque ela ficaria então completamente isolada da filosofia orgânica. O seu laço
fundamental, científico e lógico, consiste sobretudo no ramo mais complexo da primeira: o estudo dos
fenômenos de composição e de decomposição, os mais eminentes daqueles que a existência universal
comporta e os mais próximos da ordem vital propriamente dita. É assim que a filosofia natural, encarada
como preâmbulo necessário da filosofia social, decompondo-se a princípio em dois estudos extremos e
um intermediário, compreende sucessivamente estas três grandes ciências, a Astronomia, a Química e a
Biologia, das quais a primeira se liga imediatamente à origem espontânea do verdadeiro espírito
científico e a última ao seu destino essencial. Seu surto inicial respectivo refere-se historicamente à
antigüidade grega, à Idade Média e à época moderna.
72. Semelhante apreciação enciclopédica não preenche ainda as condições indispensáveis de
continuidade e de espontaneidade peculiares a tal assunto: por um lado deixa uma lacuna capital entre a
Astronomia e a Química, cuja ligação não poderia ser direta; por outro não indica suficientemente a
verdadeira origem deste sistema especulativo, como simples prolongamento abstrato da razão comum,
cujo ponto de partida científico não podia ser diretamente astronômico. Para completar, porém, a fórmula
fundamental, basta nela inserir, em primeiro lugar, entre a Astronomia e a Química, a Física
propriamente dita, que só adquiriu existência distinta sob Galileu; em segundo lugar, colocar, no começo
deste vasto conjunto, a Ciência Matemática, único berço necessário da positividade racional, tanto para o
indivíduo como para a espécie. Se, por uma aplicação mais especial do nosso princípio enciclopédico, se
decompuser, por sua vez, esta ciência inicial em seus três grandes ramos, o Cálculo, a Geometria e a
Mecânica, determinar-se-á enfim, com a última precisão filosófica, a verdadeira origem de todo o
sistema científico, saído a princípio, com efeito, das especulações puramente numéricas, que, sendo as
mais gerais, as mais abstratas e as mais independentes de todas, quase se confundem com a irrupção
espontânea do espírito positivo nas inteligências mais vulgares, como o confirma ainda, sob os nossos
olhos, a observação, diária do desenvolvimento individual.
73. Chega-se, assim, de modo gradual, a descobrir a invariável hierarquia, a um tempo histórica e
dogmática, igualmente científica e lógica, das seis ciências fundamentais, a Matemática, a Astronomia, a
Física, a Química, a Biologia e a Sociologia, das quais a primeira constitui necessariamente o ponto de
partida exclusivo e a última o fim único e essencial de toda a filosofia positiva, encarada daqui por diante
como formando, por sua natureza, um sistema verdadeiramente indivisível, onde toda decomposição é
radicalmente artificial, sem ser, aliás, de nenhum modo, arbitrária, pois tudo nele se refere enfim à
Humanidade, única concepção plenamente universal. O conjunto desta fórmula enciclopédica,
exatamente conforme às verdadeiras afinidades dos estudos correspondentes, compreendendo, além
disso, sem nenhuma dúvida, todos os elementos de nossas especulações reais, permite enfim a cada
inteligência renovar à sua vontade a história geral do espírito positivo, ao passar, de modo quase
insensível, das mais insignificantes idéias matemáticas aos mais altos pensamentos sociais. É claro, com
efeito, que cada uma das quatro ciências intermediárias se confunde, por assim dizer, com a precedente
quanto aos seus fenômenos mais simples e com a seguinte quanto aos mais eminentes. Esta perfeita
continuidade espontânea se tornará sobretudo irrecusável a todos que reconhecerem, na obra acima

indicada, que o mesmo princípio enciclopédico fornece também a classificação racional das diversas
partes constituintes de cada estudo fundamental, de sorte que os degraus dogmáticos e as fases históricas
se podem exprimir tanto quanto o exige a precisão das comparações ou a facilidade das transições.
74. No estado presente das inteligências, a aplicação lógica desta grande fórmula é ainda mais importante
do que o seu uso científico, por ser o método, em nossos dias, mais essencial do que a própria doutrina, e
além disso o único imediatamente suscetível de plena regeneração. Sua principal utilidade consiste, pois,
hoje, em determinar, com rigor, a marcha invariável de toda educação realmente positiva, no meio dos
preconceitos irracionais e dos viciosos hábitos peculiares ao desenvolvimento preliminar do sistema
científico, formado, assim, gradualmente de teorias parciais e incoerentes, cujas relações deviam até hoje
permanecer despercebidas de seus fundadores sucessivos. Todas as classes atuais de sábios violam agora,
com igual gravidade, ainda que a títulos diversos, esta obrigação fundamental. Limitando-nos aqui a
indicar os dois casos extremos: os geômetras, justamente orgulhosos de se acharem colocados na
verdadeira origem da positividade racional, se obstinam às cegas em reter o espírito humano neste grau
puramente inicial do verdadeiro desenvolvimento especulativo, sem jamais considerarem o seu único
destino necessário; ao revés, os biologistas, enaltecendo, com bom direito, a dignidade superior do seu
assunto, imediatamente vizinho deste grande destino, persistem em manter seus estudos em irracional
insulamento, libertando-se arbitrariamente da difícil preparação que a sua natureza exige. Estas
disposições opostas, mas por igual empíricas, conduzem freqüentemente hoje, uns, a vão desperdício de
esforços intelectuais, consumidos daqui por diante em pesquisas mais e mais pueris; outros, a uma
instabilidade contínua das diversas noções essenciais, por falta de marcha verdadeiramente positiva. Sob
este último aspecto, sobretudo, deve-se notar, com efeito, que os estudos sociais não são agora os únicos
a permanecerem ainda exteriores ao sistema plenamente positivo, sob o estéril domínio do espírito
teológico-metafísico; na realidade, os próprios estudos biológicos, sobretudo dinâmicos, embora estejam
academicamente constituídos, não alcançaram também até aqui, uma verdadeira positividade, pois
nenhuma doutrina capital se acha hoje neles esboçada no grau requerido, de sorte que o campo das
ilusões e das charlatanices ainda aí permanece quase indefinido. Ora, o deplorável prolongamento de
semelhante situação resulta essencialmente, em ambos os casos, do insuficiente preenchimento das
grandes condições lógicas determinadas por nossa lei enciclopédica; porque ninguém contesta mais, há
muito tempo, a necessidade de se adotar naqueles estudos a marcha positiva: mas todos lhe desconhecem
a natureza e as obrigações que só a genuína hierarquia positiva pode caracterizar. Que esperar, com
efeito, quer em relação aos fenômenos sociais, quer mesmo em relação ao estudo mais simples da vida
individual, de uma cultura que empreende diretamente especulações tão complexas, sem para tal se ter
dignamente preparado através de sã apreciação dos métodos e das doutrinas relativas aos diversos
fenômenos menos complicados e mais gerais, sem poder, portanto, suficientemente conhecer nem a
lógica indutiva, caracterizada principalmente, no estado rudimentar, pela Química, pela Física, e antes
pela Astronomia, nem mesmo a pura lógica dedutiva, ou a arte elementar do raciocínio decisivo, que só a
Matemática pode convenientemente desenvolver?
75. Para facilitar o uso habitual de nossa fórmula hierárquica, é muito conveniente, quando não se tem
necessidade de grande precisão enciclopédica, sejam os seus termos grupados dois a dois, reduzindo-a a
três pares, um inicial, matemático-astronômico, outro final, biológico-sociológico, separados e reunidos
pelo par intermediário, físico-químico. Esta feliz condensação resulta de irrecusável apreciação, pois
existe, de fato, maior afinidade natural, tanto científica como lógica, entre os dois elementos de cada par
do que entre os próprios pares consecutivos, como o confirma muitas vezes a dificuldade que se
experimenta em separar nitidamente a Matemática da Astronomia, e a Física da Química, em virtude dos

hábitos vagos que ainda dominam todos os pensamentos de conjunto; a Biologia e a Sociologia,
sobretudo, continuam quase a ser confundidas pela maior parte dos pensadores atuais. Sem chegar nunca
até essas viciosas confusões, que alterariam radicalmente as transições enciclopédicas, será, as mais das
vezes, útil reduzir assim a hierarquia elementar das especulações reais aos três pares mencionados, cada
um dos quais poderá, aliás, ser designado brevemente pelo seu elemento mais especial, que é sempre, na
realidade, o mais característico e o mais próprio para definir as grandes fases da evolução positiva,
individual e coletiva.
3o. – Importância da lei enciclopédica
76. Esta apreciação sumária basta aqui para indicar o destino e assinalar a importância de semelhante lei
enciclopédica, onde reside, afinal, uma das duas idéias-mães, cuja íntima combinação espontânea
constitui necessariamente a base sistemática da nova filosofia geral. A terminação deste longo Discurso,
no qual o genuíno espírito positivo foi caracterizado sob todos os aspectos essenciais, aproxima-se,
assim, do seu começo, pois esta teoria da classificação deve ser encarada, em último lugar, como
naturalmente inseparável da teoria da evolução, ali exposta; de sorte que o Discurso atual forma, por si
mesmo, verdadeiro conjunto, imagem fiel, embora muito reduzida, de um vasto sistema. É fácil
compreender, com efeito, que a consideração habitual de semelhante hierarquia deve tornar-se
indispensável, quer para aplicar, de modo conveniente, nossa lei inicial dos três estados, quer para
dissipar suficientemente as únicas objeções sérias que possa comportar; porque a freqüente
simultaneidade histórica das três grandes fases mentais para com especulações diferentes, constituiria, de
qualquer outro modo, inexplicável anomalia que, ao contrário, nossa lei hierárquica, a qual se refere tanto
à sucessão quanto à dependência dos diversos estudos positivos, resolve espontaneamente. Concebe-se
igualmente em sentido inverso que a regra de classificação supõe a da evolução, pois todos os motivos
essenciais da ordem assim estabelecida resultam, no fundo, da desigual rapidez de semelhante
desenvolvimento entre as diferentes ciências fundamentais.
77. A combinação racional entre estas duas idéias-mães constitui a unidade necessária do sistema
científico, onde todas as partes concorrem cada vez mais para um mesmo fim, e assegura também, por
outro lado, a justa independência das diversas ciências principais, ainda amiúde muito alterada por
viciosas aproximações. O espírito positivo, no seu desenvolvimento preliminar, único até aqui realizado,
teve de estender-se gradualmente dos estudos inferiores aos superiores, de modo que estes ficaram
inevitavelmente expostos à opressiva invasão dos primeiros, contra o ascendente dos quais sua
indispensável originalidade não achava a princípio garantia senão no prolongamento exagerado da tutela
teológico-metafísica. Esta deplorável flutuação, muito sensível ainda na ciência dos corpos vivos,
caracteriza hoje o que contém de real, no fundo, as longas controvérsias, aliás tão vãs, sob qualquer outro
aspecto, entre o materialismo e o espiritualismo, representando, de modo provisório, sob formas
igualmente viciosas, as necessidades igualmente graves, embora infelizmente opostas até aqui da
realidade e da dignidade de quaisquer de nossas especulações. Havendo, doravante, atingido sua
madureza sistemática, o espírito positivo dissipa ao mesmo tempo essas duas ordens de aberrações,
terminando esses estéreis conflitos pela satisfação simultânea destas duas condições viciosamente
contrárias, como o indica logo nossa hierarquia científica combinada com a nossa lei da evolução, pois
cada ciência não pode atingir o verdadeiro estado positivo senão quando a originalidade do seu caráter
próprio se acha plenamente consolidada.
CONCLUSÃO

APLICAÇÃO AO ENSINO DA ASTRONOMIA
78. Uma aplicação direta desta teoria enciclopédica, ao mesmo tempo científica e lógica, nos conduz
enfim a definir exatamente a natureza e o destino do ensino especial ao qual este Tratado é consagrado.
Resulta, com efeito, das explicações precedentes, que a principal eficácia, primeiro mental, depois social,
que devemos procurar hoje na criteriosa propagação universal dos estudos positivos depende
necessariamente da estrita observância didática da lei hierárquica. Para cada rápida iniciação individual,
como para a lenta iniciação coletiva, será sempre indispensável que, desenvolvendo seu regime, o
espírito positivo, à medida que expande seu domínio, se eleve aos poucos, do estado matemático inicial
ao estado sociológico final, percorrendo sucessivamente os quatro degraus intermediários, astronômico,
físico, químico e biológico. Nenhuma superioridade individual pode verdadeiramente dispensar desta
gradação fundamental, a respeito da qual temos sobejas ocasiões de verificar hoje, em altas inteligências,
uma irreparável lacuna, que por vezes tem neutralizado eminentes esforços filosóficos. Semelhante
marcha deve, pois, tornar-se ainda mais indispensável na educação universal, onde as especialidades têm
pouca importância, e cuja principal utilidade, mais lógica do que científica, exige essencialmente plena
racionalidade, sobretudo quando se trata de constituir enfim o verdadeiro regime mental. Assim, este
ensino popular deve referir-se principalmente ao primeiro par científico, até que se ache
convenientemente vulgarizado. É aí que todos devem, em primeiro lugar, haurir as verdadeiras noções
elementares da sua positividade geral, adquirindo os conhecimentos que servem de base a todas as outras
especulações reais. Embora esta estrita obrigação conduza forçosamente a colocar no começo os estudos
puramente matemáticos, cumpre, entretanto, considerar que não se trata ainda de estabelecer uma
sistematização direta e completa da instrução popular, mas apenas de imprimir convenientemente o
impulso filosófico que a ela deve conduzir. Desde então se reconhece com facilidade que semelhante
movimento deve depender sobretudo dos estudos astronômicos, que, por sua natureza, oferecem
necessariamente a plena manifestação do genuíno espírito matemático, do qual constituem, no fundo, o
principal destino. Há tanto menos inconvenientes atuais em caracterizar, assim, o par inicial pela
Astronomia só, quanto os conhecimentos matemáticos realmente indispensáveis à sua judiciosa
divulgação já estão bastante difundidos ou são bastante fáceis de adquirir, para que nos possamos limitar
hoje a supô-los provindos de uma preparação espontânea.
79. Esta preponderância necessária da ciência astronômica na primeira propagação sistemática da
iniciação positiva é plenamente conforme à influência histórica de tal estudo, principal motor até aqui das
grandes revoluções intelectuais. O sentimento fundamental da invariabilidade das leis naturais devia
desenvolver-se, com efeito, primeiramente em relação aos fenômenos mais simples e mais gerais, cuja
regularidade e grandeza superiores nos manifestam a única ordem real que seja por completo
independente de qualquer intervenção humana. Antes mesmo de comportar um caráter genuinamente
científico, esta classe de concepções determinou sobretudo a passagem decisiva do fetichismo ao
politeísmo, que resultou em toda parte do culto dos astros. Seu principal esboço matemático, nas escolas
de Tales e Pitágoras, constituiu em seguida a principal origem mental da decadência do politeísmo e do
ascendente do monoteísmo. Enfim o desenvolvimento sistemático da positividade moderna, que tende
abertamente para um novo regime filosófico, resultou essencialmente da grande renovação astronômica
começada por Copérnico, Kepler e Galileu. Não é, pois, muito de admirar que a universal iniciação
positiva, sobre a qual deve apoiar-se o advento direto da filosofia definitiva, dependa também
primeiramente de semelhante estudo, em virtude da conformidade necessária da educação do indivíduo
com a evolução coletiva. Este é, sem dúvida, o último ofício fundamental que lhe deva ser próprio no
desenvolvimento geral da razão humana, a qual, tendo uma vez atingido, entre todos, uma verdadeira

positividade, deverá marchar em seguida sob um novo impulso filosófico diretamente emanado da
ciência final, desde então para sempre investida na sua presidência normal. Tal é a eminente utilidade,
não menos social do que mental, que se trata aqui de retirar enfim de judiciosa exposição popular do
sistema atual dos sãos estudos astronômicos.
NOTAS
(1) Quase todas as explicações habituais relativas aos fenômenos sociais, a maior parte das que
concernem ao homem intelectual e moral, uma grande parte de nossas teorias fisiológicas ou médicas, e
mesmo várias teorias químicas, etc., lembram ainda diretamente a estranha maneira de filosofar tão
jocosamente caracterizada por Moliere, sem nenhum grave exagero, a propósito, por exemplo, da virtude
dormitiva do ópio, de conformidade com o abalo decisivo que Descartes acabava de fazer experimentar a
todo o regime das entidades.
(2) Sobre esta apreciação geral do espírito e da marcha peculiares ao método positivo, pode-se estudar,
com muito fruto, a preciosa obra intitulada: A system of logic, rationative and inductive, recentemente
publicada em Londres (John Parker, West Strand, 1843), pelo meu eminente amigo John Stuart Mill, que
se associou assim plenamente, de ora avante, à fundação direta da nova filosofia. Os sete últimos
capítulos do tomo primeiro contêm uma admirável exposição dogmática, tão profunda quão luminosa, da
lógica indutiva, que não poderá nunca, ouso assegurá-lo, ser mais bem concebida, nem mais bem
caracterizada, desde que nos coloquemos no mesmo ponto de vista em que o autor se colocou.
(3) As constituições francesas de 1791 e 1795 (Beesly).
(4) A reação política e clerical efetuada por Bonaparte e continuada sob Luís XVIII e Carlos X (Beesly).
(5) Esta preponderância empírica do espírito de minúcia na maior parte dos cientistas atuais e sua cega
antipatia por toda e qualquer generalização acham-se muito agravadas, especialmente em França, por sua
reunião habitual em academias, onde os diversos preconceitos analíticos se fortificam mutuamente, e
onde, além disto, mui freqüentemente se desenvolvem interesses abusivos, aí se organizando uma espécie
de insurreição permanente contra o regime sintético que deve prevalecer de agora em diante. O instinto
de progresso que caracterizava, há cerca de meio século, o gênio revolucionário, havia confusamente
sentido estes perigos essenciais, de modo a determinar a supressão direta dessas companhias atrasadas,
que, convindo somente à elaboração preliminar do espírito positivo, se tornavam cada vez mais hostis à
sua sistematização final. Embora esta audaciosa medida, em geral tão mal julgada, fosse então prematura,
porque esses graves inconvenientes não podiam ainda ser assaz reconhecidos, é, contudo, certo que essas
corporações científicas já haviam realizado o principal ofício que sua natureza comportava: depois de
restaurada, sua influência real foi, no fundo, muito mais nociva do que útil à marcha atual da grande
evolução mental.

Quinta Parte

II. Conciliação positiva da ordem e do progresso
42. De acordo com este sentimento, cada vez mais desenvolvido, da igual insuficiência social, que de ora
em diante oferecem o espírito teológico e o metafísico, únicos que até aqui ativamente disputaram o
império, deve a razão pública achar-se implicitamente disposta a acolher hoje o espírito positivo como a
única base possível de verdadeira resolução da profunda anarquia intelectual e moral que sobretudo
caracteriza a grande crise moderna. A escola positiva, que ficara ainda estranha a tais questões,
preparou-se gradualmente para resolvê-las, constituindo, tanto quanto possível, durante a luta
revolucionária dos três últimos séculos, o verdadeiro estado normal de todas as categorias mais simples
de nossas especulações reais. Fortalecida por tais antecedentes científicos e lógicos, isenta, além disso,
das diversas aberrações contemporâneas, apresenta-se hoje como tendo enfim adquirido a inteira
generalidade filosófica que até aqui lhe faltava; desde então ousa empreender, por sua vez, a solução,
ainda intacta, do grande problema, transportando convenientemente para os estudos finais a mesma
regeneração que sucessivamente já operou nos diversos estudos preliminares.
43. Não se pode, à. primeira vista, desconhecer a aptidão espontânea de semelhante filosofia para
estabelecer, de modo direto, a conciliação fundamental, ainda tão vãmente procurada, entre as exigências
simultâneas da ordem e do progresso, pois lhe basta, para tal, estender até os fenômenos sociais uma
tendência plenamente conforme à sua natureza, e que ela tornou hoje muito familiar em todos os outros
casos essenciais. Em qualquer assunto o espírito positivo conduz sempre a estabelecer uma exata
harmonia elementar entre as idéias de existência e as de movimento, donde resulta mais especialmente,
para com os corpos vivos, a correlação permanente das idéias de organização e de vida, e, em seguida,
por uma última especialização peculiar ao organismo social, a solidariedade contínua das idéias de ordem
com as de progresso. Para a nova filosofia, a ordem constitui sempre a condição fundamental do
progresso; e, reciprocamente, o progresso é o objetivo necessário da ordem: como na mecânica animal,
são mutuamente indispensáveis o equilíbrio e a progressão, um como fundamento e a outra como
destino.
44. Considerado, em seguida, especialmente quanto à ordem, o espírito positivo apresenta-lhe hoje, em
sua extensão social, fortes garantias diretas, não só científicas mas também lógicas, que poderão logo ser
julgadas muito superiores às vãs pretensões de uma teologia retrógrada, que, desde vários séculos,

degenerou cada vez mais em elemento ativo de discórdias, individuais ou nacionais, e tornou-se incapaz
de conter daqui por diante as divagações subversivas dos seus próprios adeptos. Atacando a desordem
atual na sua verdadeira fonte, necessariamente mental, o espírito positivo constitui, tão profundamente
quanto possível, a harmonia lógica, regenerando primeiro os métodos, depois as doutrinas, por uma
tríplice conversão simultânea da natureza das questões dominantes, da maneira de tratá-las e das
condições preliminares da sua elaboração. De um lado, com efeito, ele demonstra que as principais
dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas sobretudo morais, de sorte que sua
solução possível depende realmente muito mais das opiniões e dos costumes do que das instituições; o
que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação política em movimento
filosófico. Sob o segundo aspecto ele encara sempre o estado presente como um resultado necessário do
conjunto da evolução anterior, de modo a fazer constantemente prevalecer a apreciação racional do
passado no exame atual dos negócios humanos; o que afasta logo as tendências puramente críticas,
incompatíveis com toda sã concepção histórica. Enfim, em lugar de deixar a ciência social no vago e
estéril insulamento em que ainda a colocam a Teologia e a Metafísica, ele a liga irrevogavelmente a todas
as outras ciências fundamentais, que constituem gradualmente, em relação a este estudo final, outros
tantos preâmbulos indispensáveis, onde a nossa inteligência adquire ao mesmo tempo os hábitos e as
noções sem as quais não podem ser utilmente tratadas as mais eminentes especulações positivas. Esta
circunstância já institui uma verdadeira disciplina mental, própria a melhorar de modo radical tais
discussões, desde então racionalmente interditas a grande número de entendimentos mal organizados ou
mal preparados. Estas grandes garantias lógicas são, aliás, em seguida plenamente confirmadas e
desenvolvidas pela apreciação científica propriamente dita, que, em relação aos fenômenos sociais assim
como a todos os outros, representa sempre nossa ordem artificial como devendo consistir sobretudo no
simples prolongamento judicioso, primeiro espontâneo, depois sistemático, da ordem natural que resulta,
em cada caso, do conjunto das leis reais, cuja ação efetiva é ordinariamente modificável por nossa
criteriosa intervenção, entre limites determinados, tanto mais distantes entre si quanto de ordem mais
elevada são os fenômenos. O sentimento elementar da ordem é, em uma palavra, naturalmente
inseparável de todas as especulações positivas, constantemente dirigidas para o descobrimento dos meios
de ligação entre observações cujo principal valor resulta da sua sistematização.
45. O mesmo se dá, e ainda mais evidentemente, quanto ao progresso, que, apesar das vás pretensões
ontológicas, acha hoje, no conjunto dos estudos científicos, sua mais incontestável manifestação. Em
virtude de sua natureza absoluta e por conseguinte essencialmente imóvel, a Metafísica e a Teologia não
poderiam comportar, com pouca diferença uma da outra, um verdadeiro progresso, isto é, uma verdadeira
progressão contínua para determinado fim. Suas transformações históricas consistem sobretudo, ao revés,
num desuso crescente, assim mental como social, sem que as questões agitadas hajam podido jamais dar
qualquer passo real, em virtude mesmo de sua radical insolubilidade. É fácil reconhecer que as
discussões ontológicas das escolas gregas se reproduziram essencialmente, sob outras formas, entre os
escolásticos da Idade Média, e encontramos hoje o equivalente delas entre os nossos psicólogos ou
ideólogos, pois nenhuma das doutrinas controvertidas pôde, durante estes vinte séculos de estéreis
debates, chegar a demonstrações decisivas, nem mesmo no que concerne à existência dos corpos
exteriores, ainda tão problemática para os argumentadores modernos como para os seus mais antigos
predecessores. Foi evidentemente o avanço contínuo dos conhecimentos positivos que inspirou, há dois
séculos, na célebre fórmula filosófica de Pascal, a primeira noção racional de progresso humano,
necessariamente estranha a toda a filosofia antiga. Estendida em seguida à evolução industrial e mesmo
estética, mas tendo ficado muito confusa em relação ao movimento social, ela tende hoje de modo vago
para uma sistematização decisiva, que só pode emanar do espírito positivo, enfim convenientemente

generalizado. Em suas especulações diárias ele reproduz espontaneamente seu ativo sentimento
elementar, representando sempre a extensão e o aperfeiçoamento de nossos conhecimentos reais como o
objetivo essencial de nossos diversos esforços teóricos. Sob um aspecto mais sistemático, a nova filosofia
aponta, diretamente, como destino necessário a toda nossa existência, a um tempo pessoal e social, o
melhoramento contínuo, não somente de nossa condição, mas também e sobretudo de nossa natureza,
tanto quanto o comporta, a todos os respeitos, o conjunto das leis reais exteriores e interiores. Erigindo,
assim, a noção de progresso em dogma verdadeiramente fundamental da sabedoria humana, quer prática,
quer teórica, ela lhe imprime o mais nobre e também o mais completo caráter, representando sempre o
segundo gênero de aperfeiçoamento como superior ao primeiro. Dependendo, com efeito, de um lado, a
ação da Humanidade sobre o mundo exterior especialmente das disposições do agente, a sua melhoria
deve constituir nosso principal recurso: sendo, por outro lado, os fenômenos humanos, individuais ou
coletivos, os mais modificáveis de todos, é em relação a eles que nossa intervenção racional comporta
naturalmente a mais alta eficácia. O dogma do progresso não pode, pois, tornar-se suficientemente
filosófico senão mediante uma exata apreciação geral do que constitui sobretudo esse melhoramento
contínuo de nossa própria natureza, principal objeto da progressão humana. Ora, a este respeito, o
conjunto da filosofia positiva demonstra plenamente, como se pode ver na obra indicada no começo deste
Discurso que tal aperfeiçoamento consiste essencialmente, assim para o indivíduo como para a espécie,
em fazer prevalecer cada vez mais os eminentes atributos que mais distinguem nossa humanidade da
simples animalidade, isto é, de uma parte a inteligência, de outra parte a sociabilidade, faculdades
naturalmente solidárias, que se servem mutuamente de meio e de fim. Embora o curso espontâneo da
evolução humana, pessoal ou social, desenvolva sempre sua comum influência, seu ascendente
combinado não poderia, entretanto, chegar ao ponto de impedir proceda habitualmente nossa principal
atividade dos instintos inferiores, que nossa constituição real torna, por força, muito mais enérgicos.
Assim esta ideal preponderância de nossa humanidade sobre nossa animalidade preenche naturalmente as
condições essenciais de um verdadeiro tipo filosófico, caracterizando determinado limite, do qual todos
os nossos esforços devem aproximar-nos constantemente sem, todavia, conseguirem jamais atingi-lo.
46. Esta dupla indicação da aptidão fundamental do espírito positivo para sistematizar espontaneamente
as sãs noções simultâneas de ordem e de progresso basta aqui para assinalar sumariamente a alta eficácia
social peculiar à nova filosofia. Seu valor, a este respeito, depende sobretudo de sua plena realidade
científica, isto é, da exata harmonia que estabelece sempre, tanto quanto possível, entre os princípios e os
fatos, não só em relação aos fenômenos sociais, como também a todos os outros. A reorganização
completa, única que pode terminar a grande crise moderna, consiste, com efeito, sob o aspecto mental,
que deve prevalecer em primeiro lugar, em constituir uma teoria sociológica própria para
convenientemente explicar o conjunto do passado humano: tal é o modo mais racional de pôr a questão
essencial, a fim de afastar dela mais facilmente qualquer paixão perturbadora. Ora, é assim que a
superioridade necessária da escola positiva sobre as diversas escolas atuais pode também ser mais
nitidamente apreciada. Sendo o espírito teológico e o metafísico levados, por sua natureza absoluta, a não
considerar senão o período do passado em que cada um deles dominou especialmente: o que precede e o
que se segue não oferece mais do que tenebrosa confusão e inexplicável desordem, cuja ligação com essa
estreita porção do grande espetáculo histórico não pode, aos seus olhos, resultar senão de milagrosa
interferência. Por exemplo, o catolicismo sempre mostrou, a respeito do politeísmo antigo, uma
tendência cegamente crítica, como a que ele hoje justamente increpa, em relação a si mesmo, ao espírito
revolucionário propriamente dito. Uma verdadeira explicação do conjunto do passado, de conformidade
com as leis constantes de nossa natureza, individual ou coletiva, é, pois, necessariamente impossível às
diversas escolas absolutas que ainda dominam, e, na realidade, nenhuma delas tentou dá-la de modo

satisfatório. Só o espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa, pode representar
de modo conveniente todas as grandes épocas históricas como outras tantas fases determinadas de uma
única evolução fundamental, onde cada uma resulta da precedente e prepara a seguinte segundo leis
invariáveis, que fixam sua participação especial na progressão comum, de modo a permitir sempre, sem
inconseqüência nem parcialidade, render exata justiça filosófica a quaisquer cooperações. Embora este
incontestável privilégio da positividade racional deva, a princípio, parecer puramente especulativo, os
verdadeiros pensadores nele reconhecerão logo a primeira fonte necessária do ativo ascendente social
reservado enfim à, nova filosofia. Podemos, na verdade, assegurar hoje que a doutrina que houver
suficientemente explicado o conjunto do passado obterá de modo inevitável, em virtude desta única
prova, a presidência mental do futuro.
CAPÍTULO II
SISTEMATIZAÇÃO DA MORAL HUMANA
47. Semelhante indicação das altas propriedades sociais que caracterizam o espírito positivo não seria
ainda assaz decisiva se lhe não ajuntássemos uma apreciação sumária de sua aptidão espontânea para
sistematizar enfim a moral humana, o que constituirá sempre a principal aplicação de toda verdadeira
teoria da Humanidade.
I. Evolução da moral positiva
48. No organismo político da antigüidade, a Moral, radicalmente subordinada à Política, não podia
jamais adquirir a dignidade nem a universalidade conveniente à sua natureza. Sua independência
fundamental e mesmo o seu ascendente normal resultaram enfim, tanto quanto era então possível, do
regime monotéico peculiar à Idade Média: este imenso serviço, devido sobretudo ao catolicismo,
constituirá sempre o seu principal título ao eterno reconhecimento do gênero humano. Foi somente
depois dessa indispensável separação, sancionada e completada pela divisão necessária dos dois poderes,
que a moral humana pôde realmente começar a tomar um caráter sistemático, estabelecendo, ao abrigo
dos impulsos passageiros, regras verdadeiramente gerais para o conjunto de nossa existência pessoal,
doméstica e social. Mas as profundas imperfeições da filosofia monoteica, que presidia então a essa
grande operação, alteraram muito a sua eficácia e comprometeram mesmo gravemente a sua estabilidade,
suscitando logo fatal conflito entre a expansão intelectual e o desenvolvimento moral. Assim ligada a
uma doutrina que não podia manter-se progressiva por muito tempo, a Moral devia em seguida ser cada
vez mais afetada pelo descrédito crescente que ia necessariamente sofrer uma teologia que, sendo daí por
diante retrógrada, se tornaria enfim radicalmente antipática à razão moderna. Exposta desde então à ação
dissolvente da Metafísica, a moral teórica recebeu, com efeito, durante os últimos cinco séculos, em cada
uma das suas três partes essenciais, ataques crescentemente perigosos, que a retidão e a moralidade
naturais do homem não puderam, pela prática, reparar sempre suficientemente, apesar do feliz
desenvolvimento contínuo que lhes devia proporcionar então a marcha espontânea da nossa civilização.
Se o ascendente necessário do espírito positivo não viesse enfim pôr termo a essas anárquicas
divagações, elas certamente imprimiriam uma flutuação mortal a todas as noções um pouco delicadas da
moral comum não somente social, mas também doméstica e até mesmo pessoal, não deixando subsistir
por toda parte senão as regras relativas aos casos mais grosseiros que a apreciação vulgar pudesse
diretamente garantir.
49. Em semelhante situação, deve parecer estranho que a única filosofia capaz efetivamente de
consolidar hoje a Moral se veja, ao revés, tachada, a este respeito, de incompetência radical, pelas

diversas escolas atuais desde os genuínos católicos até os simples deístas, que, no meio de seus vãos
debates, se põem de acordo especialmente para lhe interdizer essencialmente o acesso destas questões
fundamentais, pelo único motivo de que o seu gênio, demasiado parcial, se limitara até aqui aos assuntos
mais simples. O espírito metafísico que tendeu tantas vezes a dissolver a Moral, e o espírito teológico,
que, há muito, perdeu a força de preservá-la, persistem contudo em fazer dela uma espécie de apanágio
eterno e exclusivo, sem que a razão pública tenha ainda julgado convenientemente essas pretensões
empíricas. Cumpre, é verdade, reconhecer que, em geral, a introdução de qualquer regra moral devia
operar-se por toda a parte primeiramente sob as inspirações teológicas, então incorporadas
profundamente ao sistema inteiro de nossas idéias, inspirações que eram também as únicas suscetíveis de
constituir opiniões suficientemente comuns. Mas o conjunto do passado demonstra igualmente que esta
solidariedade primitiva decresceu sempre com o ascendente da Teologia; os preceitos morais, assim
como todos os outros, foram cada vez mais reduzidos a uma consagração puramente racional, à medida
que o vulgo se tornou mais capaz de apreciar a influência real de cada conduta sobre a existência
humana, individual ou social. Separando de modo irrevogável a Moral da Política o catolicismo devia
desenvolver em alto grau essa tendência continua, pois a intervenção sobrenatural se achou assim
diretamente reduzida a formar regras gerais, cuja aplicação particular ficava desde então confiada à
sabedoria humana. Dirigindo-se a populações mais adiantadas, ele entregou à razão pública uma série de
preceitos especiais que os sábios antigos acreditavam não poder dispensar nunca as injunções religiosas,
como o pensam ainda os doutores politeístas da Índia, por exemplo, quanto à maior parte das práticas
higiênicas. Podem-se também observar, decorridos mais de três séculos depois de São Paulo, as sinistras
predições de vários filósofos ou magistrados pagãos sobre a iminente imoralidade que a próxima
revolução teológica ia necessariamente acarretar. Tampouco as declamações atuais das diversas escolas
monoteicas impedirão o espírito positivo de completar hoje, sob condições convenientes, a conquista
prática e teórica do domínio moral, já entregue espontaneamente, e, cada vez mais, à razão humana, cujas
inspirações particulares só nos resta enfim sistematizar especialmente. A Humanidade não poderia, sem
dúvida, ficar indefinidamente condenada a não poder fundar suas regras de proceder senão sobre motivos
quiméricos, de maneira a eternizar uma desastrosa oposição, até aqui passageira, entre as necessidades
intelectuais e as morais.
II. Necessidade de tornar a Moral independente da Teologia e da Metafísica
50. A experiência demonstra que a assistência teológica, bem longe de ser eternamente indispensável aos
preceitos morais, lhes tem sido, ao revés, entre os modernos, cada vez mais prejudicial, fazendo-os
participar inevitavelmente, em virtude dessa funesta aderência, da decomposição crescente do regime
monotéico, sobretudo durante os três últimos séculos. Antes de mais nada, essa fatal solidariedade, à
medida que se extinguia a fé, devia diretamente enfraquecer a única base sobre a qual repousavam regras
que, amiúde expostas a graves conflitos com os nossos mais enérgicos impulsos, precisam ser
cuidadosamente preservadas de toda hesitação. A antipatia crescente que o espírito teológico justamente
inspirava à razão moderna, afetou de modo grave importantíssimas noções morais, não só relativas às
grandes relações sociais, mas ainda atinentes à simples vida doméstica e mesmo à existência pessoal.
Além disto um cego ardor de emancipação mental arrastou, de modo excessivo, a erigir algumas vezes o
desdém passageiro por essas máximas salutares em uma espécie de louco protesto contra a filosofia
retrógrada, de onde pareciam exclusivamente emanar. Até entre aqueles que conservavam a fé
dogmática, essa funesta influência se fazia sentir indiretamente, porque a autoridade sacerdotal, depois de
haver perdido sua independência política, via também decrescer cada vez mais o ascendente social
indispensável à sua eficácia moral. Além desta impotência crescente para proteger as regras morais, o

espírito teológico muitas vezes as prejudicou, de modo ativo, pelas divagações que suscitou, desde que
não foi mais suscetível de suficiente disciplina, sob o inevitável surto do livre exame individual.
Exercido assim, ele, na realidade, inspirou ou secundou muitas aberrações anti-sociais, que o bom senso,
entregue a si mesmo, teria espontaneamente evitado ou rejeitado. As utopias subversivas que vemos
ganhar crédito hoje, quer contra a propriedade, quer mesmo acerca da família, etc., não emanaram quase
nunca das inteligências plenamente emancipadas, nem foram por elas acolhidas, apesar das suas lacunas
fundamentais, mas antes, por certo, o foram pelas que buscam ativamente uma espécie de restauração
teológica, fundada sobre vago e estéril deísmo ou sobre um protestantismo equivalente. Enfim, essa
antiga aderência à Teologia tornou-se também necessariamente funesta à Moral, sob um terceiro aspecto
geral, opondo-se à sua sólida reconstrução sobre bases puramente humanas. Se este obstáculo consistisse
só nas cegas declamações mui freqüentemente emanadas das diversas escolas atuais, teológicas ou
metafísicas, contra o pretenso perigo de semelhante operação, os filósofos positivos poderiam limitar-se
a repelir odiosas insinuações pelo irrecusável exemplo da sua própria vida diária, pessoal, doméstica e
social. Mas esta oposição é infelizmente muito mais radical, porque resulta da irredutível
incompatibilidade necessária que evidentemente existe entre estas duas maneiras de sistematizar a Moral.
Devendo os motivos teológicos oferecer naturalmente, aos olhos do crente, uma intensidade muito
superior à de quaisquer outros, jamais poderiam transformar-se em simples auxiliares dos motivos
puramente humanos e não podem conservar nenhuma eficácia real logo que deixam de dominar. Não
existe, pois, nenhuma alternativa duradoura entre fundar enfim a moral no conhecimento positivo da
Humanidade e deixá-la repousar na determinação sobrenatural: as convicções racionais puderam
secundar as crenças teológicas, ou antes tomar gradualmente o seu lugar à medida que a fé se extinguiu;
mas a combinação inversa não constitui certamente senão uma utopia contraditória, na qual o principal
seria subordinado ao acessório.
51. Judiciosa observação do verdadeiro estado da sociedade moderna representa, pois, como cada vez
mais desmentida pelo conjunto dos fatos diários, a pretensa impossibilidade de ser dispensável de ora em
diante qualquer teologia para consolidar a Moral; porque essa perigosa ligação devia tornar-se desde o
fim da Idade Média triplicentemente funesta à Moral, quer enervando ou desacreditando suas bases
intelectuais, quer lhe suscitando perturbações diretas, quer impedindo sua melhor sistematização. Se,
apesar de ativos princípios de desordem, a moralidade prática realmente melhorou, este feliz resultado
não poderia ser atribuído ao espírito teológico, então degenerado, pelo contrário, em perigoso
dissolvente: ele é devido, no mais alto grau, à ação do espírito positivo, já eficaz sob sua forma
espontânea, que consiste no bom senso universal, cujas sábias inspirações secundaram o impulso natural
de nossa civilização progressiva para combater utilmente as diversas aberrações, sobretudo as que
emanavam das divagações religiosas. Quando, por exemplo, a teologia protestante tendia a alterar
gravemente a instituição do casamento, pela consagração formal do divórcio, a razão pública
neutralizava consideravelmente os seus funestos efeitos, impondo quase sempre o respeito prático dos
costumes anteriores, únicos conformes ao verdadeiro caráter da sociabilidade moderna. Irrecusáveis
experiências provaram, a1ém disso, ao mesmo tempo, em vasta escala, no seio das massas populares, que
o pretenso privilégio exclusivo das crenças religiosas de determinar grandes sacrifícios ou ativos
devotamentos podia, de igual modo, pertencer a opiniões diretamente opostas, e aplicava-se, em geral, a
toda convicção profunda, qualquer que seja a sua natureza. Os numerosos adversários do regime
teológico que, há meio século, garantiram com tanto heroísmo nossa independência nacional contra a
coligação retrógrada, não mostraram, sem dúvida, uma abnegação menos completa e menos constante do
que os bandos supersticiosos que, no seio da França, auxiliaram a agressão exterior.

52. Para acabar de apreciar as atuais pretensões da filosofia teológico-metafísica de conservar a
sistematização exclusiva da moral comum, basta encarar diretamente a doutrina perigosa e contraditória
que o progresso inevitável da emancipação a forçou logo a estabelecer a esse respeito, consagrando por
toda a parte, sob formas mais ou menos explícitas, uma espécie de hipocrisia coletiva, análoga à que se
supõe, muito sem razão, ter sido habitual entre os antigos, embora ela só tenha comportado na
antigüidade um êxito precário e passageiro. Não podendo impedir o livre desenvolvimento da razão
moderna nos espíritos cultos, procurou-se, assim, obter deles, em vista do interesse público, o respeito
aparente das antigas crenças, para que estas mantivessem, sobre o vulgo, a autoridade julgada
indispensável. Esta transação sistemática não é por forma alguma peculiar aos jesuítas, ainda que
constitua o fundo essencial de sua tática. O espírito protestante imprimiu-lhe também, a seu modo, uma
consagração ainda mais intima, mais extensa e sobretudo mais dogmática; os metafísicos propriamente
ditos adotam-na tanto quanto os próprios teólogos; o maior dentre eles , embora sua alta moralidade fosse
na verdade digna de sua eminente inteligência, foi arrastado a sancioná-la essencialmente, estabelecendo,
de uma parte, que as opiniões teológicas não comportam nenhuma verdadeira demonstração, e, de outra
parte, que a necessidade social obriga a indefinidamente manter-lhes o império. Apesar de poder
semelhante doutrina tornar-se respeitável entre aqueles que lhe não acrescentam nenhuma ambição
pessoal, não tende menos a viciar todas as fontes da moralidade humana, fazendo-a necessariamente
repousar sobre um estado contínuo de falsidade, e mesmo de desprezo, dos superiores para com os
inferiores. Enquanto os que deviam participar dessa dissimulação sistemática foram pouco numerosos, a
sua prática foi possível, ainda que precária; mas tornou-se ainda mais ridícula do que odiosa quando a
emancipação se estendeu bastante para que essa espécie de conspiração piedosa pudesse hoje abranger,
como seria necessário, a maior parte dos espíritos ativos. Enfim, mesmo que se suponha realizada essa
quimérica extensão, esse pretenso sistema deixa subsistir completamente a dificu1dade a respeito das
inteligências emancipadas cuja moralidade própria fica assim abandonada à sua pura espontaneidade,. já
exatamente reconhecida insuficiente na classe submissa. Se é preciso admitir também a necessidade de
verdadeira sistematização moral para esses espíritos emancipados, ela só poderá repousar desde então
sobre bases positivas, que finalmente serão assim julgadas indispensáveis. Quando a limitar-lhe o destino
à classe ilustrada, além de semelhante restrição não poder mudar a natureza dessa grande construção
filosófica seria evidentemente ilusória numa época em que a cultura mental, que essa fácil libertação
supõe, já se tornou muito comum, ou antes quase universal, pelo menos em França. Assim, o expediente
empírico sugerido pelo vão desejo de manter, a todo custo, o antigo regime intelectual, só terá como
resultado deixar a maior parte dos espíritos ativos desprovida de toda doutrina moral, como mui
freqüentemente acontece hoje.
III. Necessidade de um poder espiritual positivo
53. É, portanto, sobretudo em nome da Moral que cumpre de ora avante trabalhar ardentemente para
constituir enfim o ascendente universal do espírito positivo, a fim de substituir um sistema decaído que,
ora impotente, ora perturbador, exigiria cada vez mais a compressão mental como condição permanente
da ordem moral. Só a nova filosofia pode estabelecer hoje, quanto aos nossos deveres, convicções
profundas e ativas, verdadeiramente suscetíveis de sustentar com energia o choque das paixões. De
acordo com a teoria positiva da Humanidade, irrecusáveis demonstrações, apoiadas sobre a imensa
experiência que agora a nossa espécie possui, determinarão exatamente a influência real, direta ou
indireta, privada e pública, peculiar a todo ato, a todo hábito e a todo pendor ou sentimento; donde
naturalmente resultarão, como outros tantos corolários inevitáveis, as regras de proceder, quer gerais,
quer especiais, mais conformes à ordem universal e que, por conseguinte, deverão ser ordinariamente

mais favoráveis à felicidade individual. Apesar da dificuldade deste grande assunto, ouso assegurar que,
convenientemente tratado, comporta conclusões tão certas quanto as da própria Geometria. Não se pode,
sem dúvida, esperar jamais tornar algum dia suficientemente acessíveis a todas as inteligências estas
provas positivas de várias regras morais destinadas, entretanto, à vida comum; mas isso já acontece com
as diversas prescrições matemáticas que, todavia, são aplicadas sem hesitação nas mais graves ocasiões,
quando, por exemplo, nossos marinheiros arriscam diariamente sua existência, fiados em teorias
astronômicas que absolutamente não conhecem. Por que igual confiança não seria concedida também a
noções ainda mais importantes? É incontestável que a eficácia normal de semelhante regime exige, em
cada caso, além de poderoso impulso resultante naturalmente dos preconceitos públicos, a intervenção
sistemática, ora passiva, ora ativa, de uma autoridade espiritual, destinada a lembrar, com energia, as
máximas fundamentais e a dirigir-lhes criteriosamente a aplicação, como expliquei de modo especial na
obra já mencionada. Desempenhando, assim, a grande função social que o catolicismo não preenche
mais, este novo poder moral cuidadosamente utilizará a feliz aptidão da filosofia correspondente para
incorporar em si espontaneamente a sabedoria real dos diversos regimes anteriores, segundo a tendência
ordinária do espírito positivo em relação a qualquer assunto. Quando a astronomia moderna afastou de
modo irrevogável os princípios astrológicos, não deixou, contudo, de conservar preciosamente todas as
noções verdadeiras obtidas sob o domínio desses princípios; o mesmo se deu com a Química em reação à
alquimia.
CAPÍTULO III
SURTO DO SENTIMENTO SOCIAL
54. Sem poder empreender aqui a apreciação moral da filosofia positiva, cumpre, entretanto, assinalar a
tendência contínua que, de modo direto, resulta de sua própria constituição, tanto científica como lógica,
para estimular e consolidar o sentimento do dever, desenvolvendo sempre o espírito de conjunto que a
ele se acha naturalmente ligado. Este novo regime mental dissipa espontaneamente a fatal oposição que,
desde o fim da Idade Média, existe cada vez mais entre as necessidades intelectuais e as necessidades
morais. De ora em diante, ao contrário, todas as especulações reais, convenientemente sistematizadas,
concorrerão de modo contínuo para constituir, tanto quanto possível, a universal preponderância da
Moral, pois o ponto de vista social há de tornar-se nelas necessariamente o laço científico e o regulador
lógico de todos os outros aspectos positivos. É impossível que desenvolvendo familiarmente semelhante
coordenação as idéias de ordem e harmonia, sempre ligadas à Humanidade, não tenda a moralizar
profundamente, não só os espíritos de escol, como também a massa das inteligências, que deverão todas
participar mais ou menos desta grande iniciação, por via de um sistema conveniente de educação
universal.
1o. – O antigo regime moral é individual
55. Uma apreciação mais íntima e mais extensa, ao mesmo tempo prática e teórica, representa o espírito
positivo como sendo, por sua natureza, o único suscetível de desenvolver diretamente o sentimento
social, primeira base necessária de toda sã moral. O antigo regime mental não podia estimulá-la senão
com o auxílio de penosos sacrifícios indiretos, cujo êxito real devia ser muito imperfeito, em vista da
tendência essencialmente pessoal de semelhante filosofia, quando a sabedoria do sacerdócio não lhe
neutralizava a influência espontânea. Esta necessidade é agora reconhecida, pelo menos empiricamente,
quanto ao espírito metafísico propriamente dito, que não pôde nunca conduzir, em Moral, a nenhuma
outra teoria efetiva a não ser o desastroso sistema de egoísmo, tão usado hoje, apesar de muitas

declamações contrárias; mesmo as seitas ontológicas que protestaram seriamente contra semelhante
aberração não a substituíram senão por vagas ou incoerentes noções, incapazes de eficácia prática. Uma
tendência tão deplorável, e, contudo, tão constante, deve ter raízes mais profundas do que comumente se
supõe. Ela resulta, com efeito, sobretudo da natureza necessariamente pessoal de semelhante filosofia
que, limitada sempre à consideração do indivíduo, na realidade nunca pôde abranger o estudo da espécie,
por uma conseqüência inevitável de seu vão princípio lógico, reduzido, em essência, à intuição
propriamente dita, que não comporta evidentemente nenhuma aplicação coletiva. Suas fórmulas
ordinárias apenas ingenuamente lhe traduzem o espírito fundamental; para cada um dos seus adeptos o
pensamento dominante é sempre o do eu: quaisquer outras existências, mesmo humanas, são
confusamente envolvidas em uma única concepção negativa e seu vago conjunto constitui o não-eu; a
noção de nós não poderia achar aí nenhum lugar direto e distinto. Mas, examinando este assunto ainda
mais profundamente, cumpre reconhecer que, a este respeito, como sob qualquer outro aspecto, a
Metafísica deriva, tanto dogmática, como historicamente, da própria Teologia, da qual não podia jamais
constituir senão uma modificação dissolvente. Com efeito, este caráter de personalidade constante
pertence sobretudo, com uma energia mais direta, ao pensamento teológico, sempre preocupado, em cada
crente, com interesses essencialmente individuais, cuja imensa preponderância absorve por força
qualquer outra consideração, sem que o mais sublime devotamento lhe possa inspirar a verdadeira
abnegação justamente considerada então como perigosa aberração. Somente a oposição freqüente desses
interesses quiméricos aos reais forneceu à sabedoria do sacerdócio poderoso meio de disciplina moral,
que pôde, amiúde, impor, em proveito da sociedade, admiráveis sacrifícios, que, entretanto, só o eram em
aparência, pois sempre se reduziam a prudente ponderação de interesses. Os sentimentos benévolos e
desinteressados, peculiares à natureza humana, deveram, sem dúvida, manifestar-se através de tal regime,
e mesmo, a certos respeitos, sob o seu impulso indireto; mas, embora a expansão desses sentimentos não
tenha podido ser assim comprimida, deve seu caráter ter dele recebido grave alteração, que
provavelmente ainda não nos permite conhecer-lhe plenamente a natureza e a intensidade, por falta de
exercício próprio e direto. Há toda razão de presumir-se, aliás, que esse hábito contínuo de cálculos
pessoais em relação aos mais caros interesses do crente desenvolveu no homem, mesmo a outros
respeitos, por via de afinidade gradual, um excesso de circunspecção, de previdência, e, finalmente, de
egoísmo, que sua organização fundamental não exigia, e por isto poderá um dia diminuir sob melhor
regime moral. Seja ou não verdadeira esta conjetura, é incontestável ser o pensamento teológico, por sua
natureza, essencialmente individual, e jamais diretamente coletivo. Aos olhos da fé teológica, sobretudo
monoteica, a vida social não existe por falta de um destino que lhe seja próprio. A sociedade humana não
pode então imediatamente oferecer senão uma simples aglomeração de indivíduos, cuja reunião é quase
tão fortuita quanto passageira, cada um dos quais, ocupado com a sua própria salvação, não concebe
participar na de outrem, a não ser como poderoso meio de merecer mais a sua, obedecendo às prescrições
supremas que lhe impuseram tal dever. Merecerá sempre nossa respeitosa admiração a prudência
sacerdotal que, sob o feliz impulso do instinto público, soube tirar, durante muito tempo, grande utilidade
prática de uma filosofia tão imperfeita. Mas este justo reconhecimento não pode ir até o ponto de
prolongar artificialmente o regime inicial além do seu destino provisório, quando chegou enfim a época
de uma economia mais conforme com o conjunto de nossa natureza intelectual e afetiva.
2o. – O Espírito positivo é diretamente social
56. O espírito positivo, ao contrário, é diretamente social, tanto quanto possível e sem nenhum esforço,
em virtude mesmo da sua realidade característica. Para ele o homem propriamente dito não existe, só
pode existir a Humanidade, pois todo nosso desenvolvimento é devido à sociedade, sob qualquer aspecto

que o encaremos. Se a idéia de sociedade parece ainda uma abstração de nossa inteligência, é sobretudo
em virtude do antigo regime filosófico; porque, a dizer verdade, é à idéia de indivíduo que pertence
semelhante caráter, pelo menos em nossa espécie. O conjunto da nova filosofia tenderá sempre a fazer
sobressair, tanto na vida ativa como na especulativa, a ligação de cada um a todos, sob uma série de
aspectos diversos, de modo a tornar involuntariamente familiar o sentimento íntimo da solidariedade
social, convenientemente estendida a todos os tempos e a todos os lugares. Não somente a ativa
preocupação do bem público será sempre representada como a maneira mais conveniente de assegurar a
felicidade privada; mas, por uma influência, ao mesmo tempo mais direta e mais pura, enfim mais eficaz,
o exercício tão completo quanto possível dos pendores generosos se tornará a principal fonte da
felicidade pessoal, mesmo quando não deva excepcionalmente proporcionar outra recompensa além de
inevitável satisfação interior. Se, realmente, como não se poderia duvidar, a felicidade resulta sempre de
criteriosa atividade, deve ela depender principalmente dos instintos simpáticos, embora nossa
organização lhes não conceda ordinariamente preponderante energia. É claro que os sentimentos
benévolos são os únicos que podem desenvolver-se com inteira liberdade no estado social que,
abrindo-lhes um campo indefinido, os estimula cada vez mais, ao passo que exige necessariamente certa
compressão permanente dos impulsos pessoais, cujo surto espontâneo suscitaria conflitos contínuos.
Nesta vasta expansão social, todos encontrarão a satisfação normal do desejo de se eternizar, que não
podia antes ser satisfeito senão com o auxílio de ilusões de ora avante incompatíveis com a nossa
evolução mental. Não podendo mais prolongar-se senão pela espécie, o indivíduo será, assim, arrastado a
incorporar-se nela o mais completamente possível, ligando-se profundamente a toda a sua existência
coletiva, não só atual, mas também passada, e sobretudo futura, de modo a obter toda a intensidade de
vida que comporta, em cada caso, o conjunto das leis reais. Esta grande identificação poderá tornar-se
tanto mais íntima e mais bem sentida quanto a nova filosofia designa necessariamente para as duas sortes
de vida um mesmo destino fundamental e uma única lei de evolução, que consiste sempre, seja para o
indivíduo, seja para a espécie, na progressão contínua, cujo fim principal foi acima caracterizado, isto é,
a tendência a fazer prevalecer, de um e de outro lado, tanto quanto possível, o atributo humano, ou a
combinação da inteligência com a sociabilidade, sobre a animalidade propriamente dita. Não sendo
desenvolvíveis quaisquer de nossos sentimentos a não ser por um exercício direto e prolongado, tanto
mais indispensável quanto são menos enérgicos no princípio, seria supérfluo insistir mais aqui junto de
quem quer que possua, mesmo empiricamente, verdadeiro conhecimento do homem, para demonstrar a
superioridade necessária do espírito positivo sobre o antigo espírito teológico-metafísico, quanto ao
desenvolvimento próprio e ativo do instinto social. Esta preeminência é de uma natureza por tal forma
sensível que, sem dúvida, a razão pública as reconhecerá suficientemente, muito tempo antes de terem as
instituições correspondentes podido tornar efetivas, como convém, suas felizes propriedades.