martes, 27 de septiembre de 2011

Segunda Parte Comte

ó e isolado, continuou a atacar os cientistas que se recusaram a reconhecê-lo. Queixou-se de seus
inimigos aos ministros do Rei, escreveu cartas delirantes à imprensa e atormentou a paciência de seus
poucos restantes amigos. Criando demasiado inimigos na École Polytechnique, sua nomeação como o
examinador não foi renovada em 1844. Perdeu com isto a metade de sua renda. (iria perder também a
posição de assistente na École em 1851.)
Contudo apesar de todos estas adversidades, Comte começou lentamente a adquirir discípulos. E mais
importante para ele foi que, além de encontrar alguns discípulos franceses notáveis, tais como o eminente
intelectual Emile Littre, era o fato de que sua doutrina positiva havia atravessado o Canal e recebera
considerável atenção na Inglaterra. David Brewster, um físico eminente, saudou-o nas páginas do
Edinburgh Review em 1838 e, o mais gratificante de tudo, John Stuart Mill transformou-se em seu
admirador, citando-o em seu System of Logic (1843) como um dos principais pensadores europeus.
Comte e Mill se corresponderam regularmente, e serviu a Comte não somente para refinar seus
pensamentos como também para desabafar com o filósofo inglês as tribulações de sua vida conjugal e as
dificuldades de sua existência material. Mill arrecadou entre admiradores britânicos de Comte uma soma
considerável em dinheiro e lhe enviou como socorro para suas dificuldades financeiras.
No mesmo ano de 1844, Comte conheceu Clotilde de Vaux, por quem se apaixonou. Ela era uma mulher
de trinta anos abandonada pelo marido, um funcionário público do baixo escalão, que havia fugido do
país depois de se apropriar de fundos do governo. Um irmão de Clotilde que havia sido aluno de Comte
na Escola Politécnica, e o convidou a ir à casa de seus pais, onde lhe apresentou a irmã.
Comte ficou inteiramente seduzido por ela. Sua paixão teve, porém, um desdobramento inusitado.
Clotilde estva impedida pela lei de casar-se achando-se o seu marido foragido. Auguste Comte tinha
então quarenta e sete anos, e havia se separado três anos antes de sua mulher. Acabara de concluir seu
monumental Cours de philosophie positive, e se preparava para escrever o que pretendia que seria sua
principal obra, o Système de politique positive, da qual ele considerava o Cours de philosophie como
apenas uma introdução. Entusiasmado com a própria paixão, Auguste Comte afirma que nada pode ser
mais eficaz para o bem pensar que o bem querer, e se tornou um abrasado feminista. Afirmava que a
mulher encarnava o sentimento e portanto, em última análise, a própria Humanidade. Buscou então
seriamente associar o sexo feminino, na pessoa de Clotilde, à obra de renovação social e moral que se
impôs completar. Clotilde tentou colaborar, através de um romance filosófico, Wilhelmine, que ela se
pôs febrilmente a escrever. Mas adoeceu de tuberculose e veio a falecer em 1846.
Comte devotou o resto de sua vida à memória do "seu anjo". O Système de politique positive, que tinha
começado a esboçar em 1844 e no qual completou sua formulação da sociologia, iria transformar-se em
um memorial a sua amada. Cinco anos mais tarde, em 1851, ao publicar essa obra, dedicou-a a Clotilde,
dizendo esperar que a humanidade, reconhecida, haveria de lembrar sempre seu nome junto ao dela.
No Système de politique positive, Comte, voltando-se contra a doutrina do mestre Saint-Simon, defendeu
a primazia da emoção sobre o intelecto, do sentimento sobre a racionalidade; e proclamou repetidamente
o poder curativo do calor feminino para a humanidade dominada por tempo demasiado pela aspereza do
intelecto masculino. Por outro lado, maquiou a proposta de disciplina eclesiástica de Saint-Simon criando
a Religião da Humanidade.
Quando o Système apareceu entre 1851 e 1854, Comte escandalizou e perdeu a maioria dos seguidores
racionalistas que ele havia conquistado com tanta dificuldade nos últimos quinze anos. John Stuart Mill e
Emile Littre não aceitaram que o amor universal fosse a solução para todas as dificuldades da época. Tão
pouco aceitariam a Religião da Humanidade da qual Comte se proclamou agora o sumo sacerdote. A
observação dos rituais múltiplos segundo o calendário anual, os detalhes da elaborada liturgia indicavam
que o antigo profeta do estágio positivo havia regressado às trevas do estágio teológico. Comte passou a
assinar suas circulares - aos novos discípulos que conseguiu reunir - como "fundador da religião
universal e sumo sacerdote da humanidade". Tentou converter o Superior Geral dos Jesuítas à nova fé e
comparou suas circulares aos discípulos com as epístolas de São Paulo. Fundou a Societé Positiviste, que
se transformou no centro principal de seu ensino. Os membros se cotizaram para assegurar a subsistência
do mestre e fizeram os votos de espalhar sua mensagem. As missões se instalaram, na Espanha,
Inglaterra, Estados Unidos, e na Holanda. Cada noite, das sete às nove, exceto nas quartas-feiras quando
a Societé Positiviste tinha sua reunião regular, Comte recebia seus discípulos em sua casa em Paris:
políticos, intelectuais e operários, que lhe votavam grande respeito e veneração. Comte estava longe do
entusiasmo republicano e libertário de sua juventude. O moto da Igreja Positiva era amor, ordem e
progresso. O jovem estudante de passeata agora pregava as virtudes do amor, da submissão e a
necessidade da ordem para o progresso social.
Em 1857, Comte, após alguns meses de enfermidade, faleceu a cinco de setembro. Um grupo pequeno de
discípulos, de amigos, e de vizinhos seguiu seu esquife ao cemitério de Pere Lachaise. Seu túmulo
transformou-se no centro de um pequeno cemitério positivista onde estão sepultados, perto do mestre,
seus discípulos mais fiéis.
Pensamento. A contribuição principal de Comte à filosofia do positivismo foi sua adoção do método
científico como base para a organização política da sociedade industrial moderna, de modo mais rigoroso
que na abordagem de Saint Simon. Em sua Lei dos três estados ou estágios do desenvolvimento
intelectual, Comte teorizou que o desenvolvimento intelectual humano havia passado historicamente
primeiro por um estágio teológico, em que o mundo e a humanidade foram explicados nos termos dos
deuses e dos espíritos; depois através de um estágio metafísico transitório, em que as explanações
estavam nos termos das essências, de causas finais, e de outras abstrações; e finalmente para o estágio
positivo moderno. Este último estágio se distinguia por uma consciência das limitações do conhecimento
humano. As explanações absolutas consequentemente foram abandonadas, buscando-se a descoberta das
leis baseadas nas relações sensíveis observáveis entre os fenômenos naturais.
Comte tentou também uma classificação das ciências; baseada na hipótese que as ciências tinham
desenvolvido da compreensão de princípios simples e abstratos à compreensão de fenômenos complexos
e concretos. Assim as ciências haviam se desenvolvido a partir da matemática, da astronomia, da física, e
da química para a biologia e finalmente a sociologia. De acordo com Comte, esta última disciplina não
somente fechava a série mas também reduziria os fatos sociais às leis científicas e sintetizaria todo o

conhecimento humano.
Embora não fosse de Comte o conceito de sociologia ou da sua área de estudo, ele ampliou seu campo e
sistematizou seu conteúdo. Dividiu a Sociologia em dois campos principais: Estática social, ou o estudo
das forças que mantêm unida a sociedade; e Dinâmica social, ou o estudo das causas das mudanças
sociais.
Dando nova roupagem às idéias de Hobbes e Adam Smith, afirmou que os princípios subjacentes da
sociedade são o egoísmo individual, que é incentivado pela divisão de trabalho, e a coesão social se
mantém por meio de um governo e um estado fortes.
Como Saint Simon, queria a administração real do governo e da economia nas mãos dos homens de
negócios e dos banqueiros, porém deu um toque pessoal seu, com origem em sua paixão por Clotilde,
dizendo que a manutenção da moralidade privada seria competência das mulheres como esposas e mães.
Dando ênfase à hierarquia e obediência, rejeitou a democracia, sustentando que o governo ideal seria
constituído por uma elite intelectual. Seu conceito de uma sociedade positiva está no seu Système de
politique positive ("Sistema de Política Positiva").
Como Saint-Simon, ele veio a adotar a idéia de que a organização da igreja católica romana, divorciada
da teologia cristã, podia fornecer um modelo estrutural e simbólico para a sociedade nova, idéia que, no
entanto, fora uma das causas alegadas para seu rompimento com o mestre. Comte substituiu a adoração a
Deus por uma "religião da humanidade"; um sacerdócio espiritual de sociólogos seculares guiaria a
sociedade e controlaria a instrução e a moralidade pública. Comte viveu para ver sua obra comentada
extensamente em toda a Europa. Muitos intelectuais ingleses foram influenciados por ele, e traduziram e
promulgaram seu trabalho. Seus devotos franceses tinham aumentado também, e mantinha uma
correspondência volumosa com sociedades positivistas em todo o mundo.
A habilidade particular de Comte era como um sintetizador das correntes intelectuais as mais diversas.
Tomou idéias principalmente dos filósofos modernos do século XVIII. De Saint-Simon e outros
reformadores franceses menores Comte tomou a noção de uma estrutura hipotética para a organização
social que imitaria a hierarquia e a disciplina existente na igreja católica romana. De vários filósofos do
Iluminismo adotou a noção do progresso histórico e particularmente de David Hume e Immanuel Kant
tomou sua concepção de positivismo, ou seja, a teoria de que o Teologia e a Metafísica são modalidades
primárias imperfeitas do conhecimento e que o conhecimento positivo é baseado em fenômenos naturais
e suas propriedades e relações como verificado pelas ciências empíricas, tese Kantiana por excelência.
O mais importante realmente provém de Saint-Simon, que havia enfatizado originalmente a importância
crescente da ciência moderna e o potencial da aplicação de métodos científicos ao estudo e à melhoria da
sociedade.
De Saint-Simon é originalmente a idéia de que a finalidade da análise científica nova da sociedade deve
ser amelhorativa e que o resultado final de toda a inovação e sistematização na nova ciência deve ser a
orientação do planeamento social. Comte também pensou que era necessário implantar uma ordem
espiritual nova e secularizada a fim de suplantar o sobrenaturalismo ultrapassado da teologia cristã.
Comte seguiu Saint-Simon quando considerou a necessidade de uma ciência social básica e unificadora
que explicasse as organizações sociais existentes e guiasse o planeamento social para um futuro melhor.
Na sua hábil sistematização Comte chamou esta nova ciência "Sociologia", pela primeira vez.
emerariamente, porém, foi mais adiante que seu mestre quando afirmou que os fenômenos sociais
poderiam ser reduzidos a leis da mesma maneira que as órbitas dos corpos celestes haviam sido
explicadas pela teoria gravitacional quase trezentos anos antes.
DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO
OBJETO DESTE DISCURSO
1. O conjunto dos conhecimentos astronômicos não deve mais ser considerado isoladamente, como até
aqui, mas constituir de ora avante apenas um dos elementos indispensáveis do novo sistema indivisível
de filosofia geral que hoje atingiu finalmente sua verdadeira maturidade abstrata, depois de ter sido
gradualmente preparado pelo concurso espontâneo dos grandes trabalhos científicos dos três últimos
séculos. Em virtude desta íntima conexidade, ainda pouco compreendida, a natureza e o destino deste
Tratado não poderão ser devidamente apreciados se este preâmbulo imprescindível não for consagrado
sobretudo à definição conveniente do verdadeiro e fundamental espírito desta filosofia, cuja instalação
universal deve ser, no fundo, o objetivo precípuo de semelhante ensino. Como ela se distingue
principalmente pela continua preponderância, a um tempo lógica e científica, do ponto de vista histórico
ou social, devo antes de tudo, para melhor caracterizá-la, lembrar de modo sumário a grande lei que
estabeleci, em meu Sistema de Filosofia Positiva, sobre a evolução total da Humanidade, lei à qual os
nossos estudos astronômicos hão de recorrer com freqüência.
I PARTE
SUPERIORIDADE MENTAL DO ESPÍRITO POSITIVO
CAPÍTULO I
LEI DA EVOLUÇÃO INTELECTUAL DA HUMANIDADE OU LEI DOS TRÊS ESTADOS
2. De acordo com esta doutrina fundamental, todas as nossas especulações estão inevitavelmente sujeitas,
assim no indivíduo como na espécie, a passar por três estados teóricos diferentes e sucessivos, que
podem ser qualificados pelas denominações habituais de teológico, metafísico e positivo, pelo menos
para aqueles que tiverem compreendido bem o seu verdadeiro sentido geral. O primeiro estado, embora
seja, a princípio, a todos os respeitos, indispensável deve ser concebido sempre, de ora em diante, como
puramente provisório e preparatório; o segundo, que é, na realidade, apenas a modificação dissolvente do
anterior, não comporta mais que um simples destino transitório, para conduzir gradualmente ao terceiro;
é neste, único plenamente normal, que consiste, em todos os. gêneros, o regime definitivo da razão
humana.
I. Estado teológico ou fictício
3. No seu primeiro surto, necessariamente teológico, todas nossas especulações manifestam de modo
espontâneo uma predileção característica pelas mais insolúveis questões, pelos assuntos mais
radicalmente inacessíveis a qualquer investigação decisiva. O espírito humano, numa época em que está
ainda abaixo dos mais simples problemas científicos, por um contraste, que em nossos dias deve
parecer-nos à primeira vista inexplicável, mas que, no fundo, se acha então em plena harmonia com a
verdadeira situação inicial da nossa inteligência, procura avidamente, e de maneira quase exclusiva, a
origem de todas as coisas, as causas essenciais, quer primárias, quer finais, dos diversos fenômenos que o

impressionam, e seu modo fundamental de produção, em uma palavra, os conhecimentos absolutos. Esta
necessidade primitiva se acha naturalmente satisfeita tanto quanto o exige tal situação é mesmo, de fato,
tanto quanto o possa jamais ser, por nossa tendência inicial a transportar por toda a parte o tipo humano,
assimilando quaisquer fenômenos aos que nós mesmos produzimos, os quais, por esta razão, começam a
parecer-nos bastante conhecidos, em virtude da intuição imediata que os acompanha. Para compreender
bem o espírito puramente teológico, proveniente do desenvolvimento, cada vez mais sistemático, deste
estado primordial, cumpre não nos limitarmos a considerá-lo na sua última fase que se consuma, à nossa
vista, nas populações mais adiantadas, mas que está longe de ser a mais característica: torna-se
indispensável lançarmos uma vista de olhos verdadeiramente filosófica sobre o conjunto de sua marcha
natural, a fim de apreciarmos sua identidade fundamental sob as três formas principais que lhe são
sucessivamente próprias.
4. A mais imediata e a mais pronunciada destas formas constitui o fetichismo propriamente dito, que
consiste sobretudo em atribuir a todos os corpos exteriores uma vida essencialmente análoga à nossa,
quase sempre, porém mais enérgica, em virtude de sua ação, de ordinário, mais poderosa. A adoração dos
astros caracteriza o grau mais elevado desta primeira fase teológica que, no começo, quase não difere do
estado mental a que atingem os animais superiores. Ainda que esta primeira forma de filosofia teológica
se manifeste com evidência na história intelectual de todas as nossas sociedades, ela já não domina
diretamente hoje senão na menos numerosa das três grandes raças que compõem a nossa espécie.
5. Na sua segunda fase essencial, que constitui o verdadeiro politeísmo, muitas vezes confundido pelos
modernos com o estado precedente, o espírito teológico representa claramente o livre predomínio
especulativo da imaginação, ao passo que até então o instinto e o sentimento tinham sobretudo
prevalecido nas teorias humanas. A filosofia inicial sofre nessa época a mais profunda transformação,
que o conjunto do seu destino real pode comportar, por isso que nela a vida é enfim retirada dos objetos
materiais, para ser misteriosamente transportada a diversos seres fictícios, habitualmente invisíveis, cuja
intervenção ativa e contínua se torna daí por diante a origem direta de todos os fenômenos exteriores e
mesmo em seguida dos fenômenos humanos. E durante esta fase característica, mal apreciada hoje, que
convém principalmente estudar o espírito teológico, que nele se desenvolve com uma plenitude e uma
homogeneidade impossível ulteriormente: esta época é, a todos os respeitos, a do seu maior ascendente,
ao mesmo tempo mental e social. A maioria de nossa espécie não saiu ainda de semelhante estado, que
persiste hoje na mais numerosa das três raças humanas, no escol da raça negra e na parte menos avançada
da branca.
6. Na terceira fase teológica, o monoteísmo propriamente dito dá começo ao inevitável declínio da
filosofia inicial. Esta, embora conserve por dilatado tempo grande influência social, contudo mais
aparente ainda do que real, sofre desde então rápido decréscimo intelectual, como conseqüência
espontânea desta simplificação característica pela qual a razão, unificando os deuses, restringe cada vez
mais o domínio anterior da imaginação e permite desenvolver gradualmente o sentimento universal,
ainda quase insignificante, da sujeição forçosa de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis. Sob
formas mui diversas e até radicalmente inconciliáveis, esta fase extrema do regime preliminar persiste
ainda, com energia muito desigual, na imensa maioria da raça branca; mas ainda que seja assim mais
fácil de ser observada, as próprias preocupações pessoais acarretam hoje um obstáculo muito freqüente à
sua judiciosa observação, por falta de uma comparação suficientemente racional e justa com as duas
fases precedentes.
7. Por mais imperfeita que possa parecer agora semelhante maneira de filosofar, muito importa ligar de

modo indissolúvel o estado atual do espírito humano ao conjunto dos seus estados anteriores,
reconhecendo convenientemente que ela devia ter sido, por muito tempo, tão indispensável como
inevitável. Limitando-nos aqui à simples apreciação intelectual, seria por certo supérfluo insistir sobre a
tendência involuntária que, mesmo hoje, nos arrasta todos às explicações de pura essência teológica, logo
que queremos penetrar diretamente o mistério inacessível do modo fundamental de produção dos
fenômenos, sobretudo daqueles cujas leis reais ainda ignoramos. Os mais eminentes pensadores podem
então verificar a sua própria disposição natural para o mais ingênuo fetichismo, quando esta ignorância
se acha combinada momentaneamente com alguma paixão pronunciada. Se, pois, todas as explicações
teológicas, experimentaram crescente e decisivo desuso entre os modernos ocidentais, isto aconteceu
porque as investigações misteriosas que elas visavam foram cada vez mais afastadas como radicalmente
inacessíveis à nossa inteligência, que se habituou pouco a pouco a substitui-las de modo irrevogável por
estudos mais eficazes e mais em harmonia com as nossas verdadeiras necessidades. Mesmo na época em
que o verdadeiro espírito filosófico já tinha prevalecido em relação aos mais simples fenômenos e em
assunto tão fácil como a teoria elementar do choque, o memorável exemplo de Malebranche lembrará
sempre a necessidade de se recorrer à intervenção direta e constante dos agentes sobrenaturais, todas as
vezes que se procure remontar à causa primeira de qualquer acontecimento. Ora, por outro lado, tais
tentativas, por mais pueris que pareçam justamente hoje, constituíam sem dúvida o início meio primitivo
de provocar as especulações humanas e determinar o seu progresso contínuo, libertando de modo
espontâneo nossa inteligência do círculo vicioso em que a princípio se acha necessariamente envolvida
pela oposição radical de duas condições por igual imperiosas. Se, de fato, os modernos tiveram de
proclamar a impossibilidade de fundar qualquer teoria sólida a não ser sobre um concurso suficiente de
observações adequadas, não é menos incontestável que o espírito humano não poderia jamais combinar,
nem mesmo recolher, esses materiais indispensáveis, sem ser continuamente dirigido por algumas idéias
especulativas previamente estabelecidas. Assim estas concepções primordiais só podiam, é claro, resultar
de uma filosofia que prescindisse, por sua natureza, de qualquer preparo prolongado, sendo capaz, em
uma palavra, de surgir espontaneamente, sob o impulso único de um instinto direto, por mais quiméricas
que devessem ser, além disso, especulações tão desprovidas de todo fundamento real. Tal é o feliz
privilégio dos princípios teológicos, sem os quais podemos assegurar que a nossa inteligência não
poderia nunca sair do seu torpor inicial; a eles permitiram, dirigindo sua atividade especulativa, preparar
gradualmente um regime lógico melhor. Esta aptidão fundamental foi, além disto, poderosamente
secundada pela primitiva predileção do espírito humano pelas questões insolúveis, que atraíam sobretudo
essa filosofia primitiva. Não podíamos avaliar nossas forças mentais, e, por conseguinte, circunscrever
judiciosamente o seu destino, senão depois de exercitá-las suficientemente. Ora, este exercício
indispensável não podia ser desde logo determinado, sobretudo nas mais débeis faculdades da nossa
natureza, sem o enérgico estímulo inerente a tais estudos, nos quais tantas inteligências mal cultivadas
ainda persistem em procurar a mais pronta e a mais completa solução das questões diretamente usuais.
Para vencer suficientemente nossa inércia nativa, foi mesmo preciso durante muito tempo recorrer às
poderosas ilusões que tal filosofia suscitava espontaneamente sobre o poder quase indefinido do homem
para modificar ao seu sabor um mundo então concebido como feito para seu uso e que nenhuma grande
lei podia ainda subtrair à arbitrária supremacia das influências sobrenaturais. Há apenas três séculos que,
no escol da Humanidade, as esperanças astrológicas e alquímicas, último vestígio científico desse
espírito primitivo, deixaram na realidade de servir para o acúmulo diário das observações
correspondentes, como o indicaram respectivamente Kepler e Berthollet.
8. O concurso decisivo destes diversos motivos intelectuais seria além disso poderosamente fortalecido,
se a natureza deste Tratado me permitisse assinalar aqui suficientemente a influência irresistível das altas

necessidades sociais, que apreciei como convinha na obra fundamental mencionada no início deste
Discurso. Pode-se assim, desde logo, demonstrar em toda a sua plenitude como o espírito teológico foi
por muito tempo indispensável à constante combinação das idéias morais e políticas, ainda mais
especialmente do que a de todas as outras, não só em virtude de sua complicação superior, mas também
porque os fenômenos correspondentes, primitivamente muito pouco pronunciados, só podiam adquirir
um desenvolvimento característico após o avanço muito prolongado da civilização humana. É uma
estranha inconseqüência, apenas desculpável pela tendência cegamente crítica do nosso tempo,
reconhecer a impossibilidade em que se achavam os antigos de filosofar sobre os assuntos mais simples a
não ser de maneira teológica e, não obstante, desconhecer a insuperável necessidade que tinham
sobretudo os politeístas de adotar um regime análogo para as especulações sociais Mas é preciso
compreender, além disso, ainda que eu não o possa demonstrar aqui, que esta filosofia inicial não foi
menos indispensável ao desenvolvimento preliminar de nossa sociabilidade do que ao de nossa
inteligência, quer para constituir primitivamente algumas doutrinas comuns, sem as quais o laço social
não teria podido adquirir nem extensão, nem consistência quer para suscitar espontaneamente a única
autoridade espiritual que poderia então surgir.

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