martes, 27 de septiembre de 2011

Cuarta Parte

26. Historicamente considerada, a oposição radical destes dois espíritos, existente em todas as fases
essenciais da filosofia inicial, é em geral há muito admitida relativamente àquelas fases que as
populações mais avançadas transpuseram completamente. É mesmo certo que, a respeito delas, se
exagera muito tal incompatibilidade em conseqüência do desdém absoluto que nossos hábitos
monotéicos inspiram de modo cego para com os dois estados anteriores do regime teológico. A sã
filosofia, sempre obrigada a apreciar a maneira necessária segundo a qual cada uma das grandes fases
sucessivas da Humanidade efetivamente concorreu para a nossa evolução fundamental, há de retificar
cuidadosamente estes injustos preconceitos, que dificultam toda verdadeira teoria histórica. Mas, embora
o politeísmo e mesmo o fetichismo, hajam, a princípio, secundado realmente o surto espontâneo do
espírito de observação, deve-se, entretanto, reconhecer que não podiam ser verdadeiramente compatíveis
com o sentimento gradual da invariabilidade das relações físicas, logo que tal sentimento pôde adquirir
certa consistência sistemática. Devemos assim conceber essa inevitável oposição como a principal fonte
secreta das diversas transformações que sucessivamente decompuseram a filosofia teológica, reduzindo-a
cada vez mais. É aqui o lugar de completar, a este propósito, a indispensável explicação indicada no
começo deste Discurso, onde essa dissolução gradual foi especialmente atribuída ao espírito metafísico
propriamente dito, que, no fundo, não podia ser senão o simples órgão de tal dissolução e nunca o seu
verdadeiro agente. Cumpre, com efeito, notar que o espírito positivo, em virtude da falta de generalidade
que devia caracterizar-lhe a lenta evolução parcial, não podia formular convenientemente suas próprias
tendências filosóficas, que apenas se tornaram sensíveis durante nossos últimos séculos. Dai resultou a
necessidade especial da intervenção metafísica, única que podia sistematizar convenientemente a
oposição espontânea da ciência nascente à antiga Teologia. Mas, ainda que tal ofício tenha feito exagerar
muito a importância efetiva deste espírito transitório, é, contudo, fácil reconhecer que só o progresso
natural dos conhecimentos reais dava séria consistência à sua ruidosa atividade. Esse progresso contínuo
que, no fundo, tinha determinado, antes, a transformação do fetichismo em politeísmo, constituiu, em
seguida, sobretudo a fonte essencial da redução do politeísmo ao monoteísmo. Como a colisão se operou
principalmente pelas teorias astronômicas, este Tratado me fornecerá a oportunidade de caracterizar o
grau preciso de seu desenvolvimento, ao qual cumpre atribuir, na realidade, a irrevogável decadência
mental do regime politéico, que havemos de reconhecer então ser logicamente incompatível com a
fundação decisiva da Astronomia Matemática pela escola de Tales.
27. O estudo racional de semelhante oposição demonstra claramente que ela não podia limitar-se à
Teologia antiga e que teve de estender-se depois ao próprio monoteísmo, embora a sua energia devesse

decrescer com a sua necessidade, à medida que o espírito teológico continuava a decair em virtude do
progresso espontâneo da ciência. Sem dúvida esta fase extrema da filosofia inicial era muito menos
contrária do que as precedentes ao surto dos conhecimentos reais, que nela não encontravam mais, a cada
passo, a perigosa concorrência de uma explicação sobrenatural especialmente formu1ada. Assim foi
especialmente sob este regime monotéico que se realizou a evolução preliminar do espírito positivo. Mas,
por ser menos explícita e mais tardia; não era a incompatibilidade finalmente menos inevitável, mesmo
antes da época em que a nova filosofia se tornaria bastante geral para tomar um caráter verdadeiramente
orgânico e substituir, de modo irrevogável, a Teologia no seu ofício social, assim como no seu destino
mental. Como o conflito se deve operar ainda sobretudo pela Astronomia, demonstrarei aqui, com
precisão, qual foi a evolução mais avançada que estendeu necessariamente sua oposição radical, antes
limitada ao politeísmo propriamente dito, até o mais simples monoteísmo: reconhecer-se-á então que essa
inevitável influência resultou do descobrimento do duplo movimento da Terra, logo seguido da fundação
da mecânica celeste. No estado presente da razão humana, podemos, assegurar que o regime monotéico,
por muito tempo favorável, aos primeiros progressos dos conhecimentos reais, entrava profundamente a
marcha sistemática que devem seguir de ora avante, impedindo adquira enfim a crença fundamental na
invariabilidade das leis físicas sua indispensável plenitude filosófica. O pensamento contínuo de súbita e
arbitrária perturbação na economia natural deve, na realidade, ficar sempre inseparável, pelo menos
virtualmente, de toda Teologia qualquer, mesmo atenuada tanto quanto possível. Sem tal obstáculo, que
não pode de fato desaparecer senão pelo completo desuso do espírito teológico, o espetáculo diário da
ordem real já teria determinado uma adesão universal ao espírito fundamental da filosofia positiva.
28. Vários séculos antes do desenvolvimento científico permitir apreciar diretamente esta oposição
radical, a transição metafísica havia tentado, sob seu secreto impulso, restringir, no próprio seio do
monoteísmo, o ascendente da Teologia, fazendo abstratamente prevalecer, no último período da Idade
Média, a célebre doutrina escolástica que sujeitou a ação efetiva do motor supremo a leis invariáveis, que
ele teria a princípio instituído, interdizendo-se jamais mudá-las. Mas, esta espécie de transação
espontânea entre o princípio teológico e o princípio positivo só comportava evidentemente uma
existência passageira, própria a facilitar mais o declínio contínuo de um e o triunfo gradual do outro. Seu
império estava mesmo limitado, em essência, aos espíritos cultos; porque, enquanto a fé realmente
subsistiu, o espírito popular teve de repelir sempre com energia uma concepção que, no fundo, tendia a
anular o poder providencial, condenando-o a uma sublime inércia, que deixava toda a atividade habitual
à grande entidade metafísica – a Natureza, associada, assim, regularmente ao governo universal a título
de ministro obrigado e responsável, ao qual se devia dirigir dai por diante a maior parte das queixas e dos
votos. Vê-se que, sob todos os aspectos essenciais, esta concepção se parece muito com a que a situação
moderna fez cada vez mais prevalecer relativamente à realeza constitucional; e esta analogia não é de
modo algum fortuita, pois o tipo teológico de fato forneceu a base racional do tipo político. Esta doutrina
contraditória, que arruína a eficácia social do princípio teológico, sem consagrar o ascendente
fundamental do princípio positivo, não poderia corresponder a nenhum estado verdadeiramente normal e
duradouro: constitui somente o mais poderoso dos meios de transição próprios à última tarefa necessária
do espírito metafísico.
29. Enfim a inevitável incompatibilidade da ciência com a Teologia teve de manifestar-se também sob
outra forma geral, especialmente adaptada ao estado monotéico, fazendo cada vez mais sobressair a
profunda imperfeição da ordem real, oposta assim ao imprescindível otimismo da providência. Este
otimismo deveu, sem dúvida, permanecer por muito tempo conciliável com o inicio espontâneo dos
conhecimentos positivos, porque uma primeira análise da natureza tinha de inspirar então, por toda a

parte, ingênua admiração pelo modo por que se realizavam os principais fenômenos constitutivos da
ordem real. Mas essa disposição inicial tende em seguida a desaparecer, não menos necessariamente, à
medida que o espírito positivo, adquirindo um caráter cada vez mais sistemático, substitui, pouco a
pouco, o dogma das causas finais pelo princípio das condições de existência, que oferece num grau mais
alto, todas as propriedades lógicas desse dogma, sem apresentar nenhum dos seus graves perigos
científicos. Deixam, então, os homens de admirar que a constituição dos seres naturais se ache, em cada
caso, disposta de maneira a permitir a realização de seus fenômenos efetivos. Ao estudar, com cuidado,
essa inevitável harmonia, com o único desígnio de a conhecer melhor, são logo notadas as profundas
imperfeições que apresenta, a todos os respeitos, a ordem real, quase sempre inferior em sabedoria à
economia artificial que a nossa fraca intervenção humana estabelece em seu limitado campo. Como estes
vícios naturais devem ser tanto maiores quanto mais complicados são os fenômenos considerados, as
indicações irrecusáveis que o conjunto da Astronomia nos há de oferecer, sob este aspecto, bastarão para
fazer pressentir aqui como semelhante apreciação deve estender-se, com uma nova energia filosófica, a
todas as outras partes essenciais da verdadeira ciência. Mas importa sobretudo compreender, em geral, a
respeito de semelhante crítica, que ela não tem apenas um destino passageiro, a título de meio
antiteológico. Ela liga-se, de maneira mais íntima e mais durável, ao espírito fundamental da filosofia
positiva, na relação geral entre a especulação e a ação. Se, por um lado, nossa intervenção ativa e
permanente repousa, antes de tudo, sobre o exato conhecimento da economia natural, da qual nossa
economia artificial deve constituir apenas, sob todos os aspectos, o melhoramento progressivo, não é
menos certo, por outro lado, que supomos assim a imperfeição necessária dessa ordem espontânea, cuja
modificação gradual constitui o fim de todos os nossos esforços diários, individuais ou coletivos.
Abstraindo-se de qualquer crítica passageira, a justa apreciação dos diversos inconvenientes próprios à
constituição efetiva do mundo real deve, pois, ser concebida de ora avante como inerente ao conjunto da
filosofia positiva, mesmo em relação aos casos inacessíveis aos nossos fracos meios de aperfeiçoamento,
a fim de conhecer melhor, quer nossa condição fundamental, quer o destino essencial de nossa continua
atividade.
CAPÍTULO III
ATRIBUTOS CORRELATOS DO ESPÍRITO POSITIVO E DO BOM-SENSO
I. Da palavra positivo: suas diversas acepções resumem os atributos do verdadeiro espírito filosófico
30. O concurso espontâneo das diversas considerações gerais indicadas neste Discurso basta para
caracterizar aqui, sob todos os aspectos principais, o verdadeiro espírito filosófico, que, após lenta
evolução preliminar, atinge hoje o seu estado sistemático. Tendo em vista a evidente obrigação em que
nos colocamos de qualificá-lo habitualmente, daqui por diante, por uma denominação curta e especial,
tive de preferir aquela a que esta universal preparação atribuiu cada vez mais, durante os três últimos
séculos, a preciosa propriedade de resumir o melhor possível o conjunto dos seus atributos fundamentais.
Como todos os termos vulgares elevados assim gradualmente à dignidade filosófica, a palavra positivo
oferece, em nossas línguas ocidentais, várias acepções distintas, mesmo que se afaste o sentido grosseiro
que lhe dão os espíritos mal cultivados. Importa, porém, notar aqui que todos esses diversos significados
convêm igualmente à nova filosofia geral, cujas diferentes qualidades características indicam
alternadamente: assim essa aparente, ambigüidade não oferecerá de agora em diante nenhum
inconveniente real. Convirá ver nisso, ao contrário, um dos principais exemplos dessa admirável
condensação de fórmulas que, nas populações avançadas, reuniu, sob uma única expressão usual, vários
atributos distintos, quando a razão pública chegou a reconhecer sua ligação permanente.

31. Considerada, em primeiro lugar, em sua acepção mais antiga e mais comum, a palavra positivo
designa o real em oposição ao quimérico: neste sentido, convém plenamente ao novo espírito filosófico,
que fica assim caracterizado pela sua constante consagração às indagações verdadeiramente acessíveis à
nossa inteligência, com a exclusão efetiva dos impenetráveis mistérios com que se ocupava sobretudo a
sua infância. Num segundo sentido muito próximo do precedente, mas, entretanto, distinto, este termo
fundamental indica o contraste entre o útil e o ocioso: lembra então, em Filosofia, que o destino
necessário de todas as nossas sãs especulações é o melhoramento contínuo de nossa verdadeira condição
individual e coletiva, e não a vã satisfação de uma curiosidade estéril. Conforme um terceiro significado
usual, esta feliz expressão é empregada freqüentemente para qualificar a oposição entre a certeza e a
indecisão: ela indica, assim, a capacidade característica de semelhante filosofia para constituir
espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo e a comunhão espiritual na espécie inteira, em lugar
dessas dúvidas indefinidas e desses debates intermináveis que o antigo regime mental devia suscitar.
Uma quarta acepção ordinária, demasiadas vezes confundida com a precedente, consiste em opor o
preciso ao vago: este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico para obter em
toda a parte o grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme à exigência de
nossas reais necessidades; ao passo que a antiga maneira de filosofar conduzia necessariamente a
opiniões vagas, por não comportar a indispensável disciplina senão em virtude de contínua compressão,
apoiada na autoridade sobrenatural.
32. Cumpre enfim notar especialmente uma quinta aplicação menos usada do que as outras, embora
igualmente universal, quando se emprega o vocábulo positivo como o contrário de negativo. Sob este
aspecto ele indica uma das mais eminentes propriedades da genuína filosofia moderna, mostrando-a
destinada, sobretudo por sua natureza, não a destruir, mas a organizar. Os quatro caracteres gerais acima
lembrados distinguem-na, ao mesmo tempo, de todos os modos possíveis, quer teológicos, quer
metafísicos, peculiares à filosofia inicial. Esta última significação, que indica, além disso, a tendência
contínua do novo espírito filosófico, oferece hoje especial importância por caracterizar diretamente uma
das suas principais diferenças, não mais do espírito teológico que foi durante muito tempo orgânico, mas
do espírito metafísico propriamente dito, que nunca pôde deixar de ser crítico. Qualquer que haja sido,
com efeito, a ação dissolvente da ciência real, esta influência foi sempre nela puramente indireta e
secundária: sua própria falta de sistematização impedia até aqui que fosse de outro modo, e o grande
ofício orgânico, que agora lhe cabe, se oporia, daqui por diante, a essa atribuição acessória, que ele tende,
aliás, a tornar supérflua. A sã filosofia afasta radicalmente, é verdade, todas as questões necessariamente
insolúveis; mas, motivando-lhes a rejeição, evita negar qualquer coisa a seu respeito, o que seria
contraditório ao desuso sistemático pelo qual devem extinguir-se todas as opiniões que não são
verdadeiramente suscetíveis de discussão. Sendo igualmente indiferente a todas elas, e, por conseguinte,
mais imparcial e tolerante em relação a cada uma do que os seus opostos partidários, a sã filosofia
aplica-se a apreciar-lhes historicamente a influência respectiva, as condições de sua duração e os motivos
de sua decadência, sem jamais pronunciar qualquer negação absoluta, mesmo quando se trata das
doutrinas mais antipáticas ao estado presente da razão humana entre as populações de escol. É assim que
presta escrupulosa justiça, não somente aos diversos sistemas de monoteísmo diferentes do que expira
hoje entre nós, mas também às crenças politéicas, ou mesmo fetíchicas, referindo-as sempre às fases
correspondentes da evolução fundamental. Sob o aspecto dogmático, ela professa além disso que as
concepções de nossa imaginação, quando sua natureza as torna necessariamente inacessíveis a toda
observação, não são mais desde então suscetíveis de negativa ou de afirmação verdadeiramente
decisivas. Ninguém, sem dúvida, jamais demonstrou logicamente a inexistência de Apolo, de Minerva,
etc., nem a das fadas orientais ou das várias criações poéticas; o que de nenhum modo impediu o espírito

humano de abandonar irrevogavelmente os dogmas antigos, quando deixaram enfim de convir ao
conjunto de sua situação.
33. O único caráter essencial do novo espírito filosófico que ainda não é indicado pela palavra positivo
consiste na sua tendência necessária a substituir por toda a parte o absoluto pelo relativo. Mas este grande
atributo, a um tempo científico e lógico, é por tal forma inerente à natureza fundamental dos
conhecimentos reais, que sua consideração geral não tardará a ligar-se intimamente aos diversos aspectos
que essa fórmula já combina, quando o moderno regime intelectual, até aqui parcial e empírico, passar
comumente ao estado sistemático. A quinta acepção, que acabamos de apreciar, é especialmente própria
para determinar esta última condensação da nova linguagem filosófica, desde então plenamente
constituída, conforme a afinidade evidente das duas propriedades. Concebe-se, com efeito, que a
natureza absoluta das antigas doutrinas, quer teológicas, quer metafísicas, determinasse necessariamente
cada uma delas a tornar-se negativa em relação a todas as outras, sob pena de degenerar em ecletismo
absurdo. É, pelo contrário, em virtude de seu gênio relativo que a nova filosofia pode apreciar sempre o
valor próprio das teorias que lhes são mais opostas, sem todavia fazer nunca qualquer vã concessão,
suscetível de alterar a nitidez de suas vistas ou a firmeza de suas decisões. Há, pois, na verdade, motivo
para presumir-se, de acordo com o conjunto de semelhante apreciação especial, que a fórmula empregada
aqui para qualificar habitualmente esta filosofia definitiva lembrará de ora em diante, a todos os bons
espíritos, a inteira combinação efetiva de suas diversas propriedades características.
II. Correlação espontânea, e depois sistemática, entre o espírito positivo e o bom senso universal
34. Quando se procura a origem fundamental de semelhante maneira de filosofar, não se tarda a
reconhecer que sua espontaneidade elementar coincide realmente com os primeiros exercícios práticos da
razão humana, porque o conjunto das explicações dadas neste Discurso demonstra claramente que todos
os seus atributos principais são, no fundo, os mesmos que os do bom senso universal. Apesar do
ascendente mental da mais grosseira Teologia, a conduta diária da vida ativa suscitou sempre, em relação
a cada ordem de fenômenos, certo esboço das leis naturais e das previsões correspondentes, em alguns
casos particulares, que pareciam então apenas secundários ou excepcionais; ora, tais são, com efeito, os
germes necessários da positividade, que devia por muito tempo permanecer empírica antes de poder
tornar-se racional. Muito importa compreender que, sob todos os aspectos essenciais, o verdadeiro
espírito filosófico consiste sobretudo na extensão sistemática do simples bom senso a todas as
especulações verdadeiramente acessíveis. Seu domínio é radicalmente idêntico, pois as maiores questões
da sã filosofia se referem por toda a parte aos fenômenos mais vulgares, em relação aos quais os casos
artificiais constituem apenas uma preparação mais ou menos indispensável. São, de um e outro lado, o
mesmo ponto de partida experimental, o mesmo objetivo de ligar e prever, a mesma preocupação
contínua de realidade, a mesma intenção final de utilidade. Toda sua diferença essencial consiste na
generalidade sistemática de um, resultante de sua abstração necessária, oposta à incoerente especialidade
do outro, sempre ocupado com o concreto.
35. Encarada sob o aspecto dogmático, esta conexidade fundamental representa a ciência propriamente
dita como um simples prolongamento metódico da sabedoria universal. Assim, muito longe de jamais pôr
em dúvida o que esta verdadeiramente decidiu, as sãs especulações filosóficas devem sempre tomar de
empréstimo à razão comum suas noções iniciais para fazê-las adquirir, por uma elaboração sistemática,
um grau de generalidade e de consistência que não podiam espontaneamente obter. Durante o curso de
uma tal elaboração o controle permanente da sabedoria vulgar conserva, além disso, alta importância a
fim de evitar, tanto quanto possível, as diversas aberrações, por negligência ou por ilusão, que muitas

vezes suscita o estado contínuo de abstração indispensável à atividade filosófica. Apesar da sua afinidade
necessária, o bom senso propriamente dito deve preocupar-se sobretudo com a realidade e a utilidade, ao
passo que o espírito filosófico tende a apreciar mais a generalidade e a ligação, de modo que sua dupla
reação diária se torna por igual favorável a ambos, consolidando em cada um as qualidades fundamentais
que nele se alterariam naturalmente. Semelhante relação indica logo como são necessariamente ocas e
estéreis as indagações especulativas, dirigidas, em qualquer assunto, para os primeiros princípios, que,
devendo sempre emanar da sabedoria vulgar, não pertencem nunca ao verdadeiro domínio da ciência, da
qual constituem, ao revés, os fundamentos espontâneos e desde então indiscutíveis, o que corta pela raiz
uma imensidade de controvérsias ociosas ou perigosas, deixadas pelo antigo regime. Pode-se igualmente
sentir assim a profunda inanidade final de todos os estudos preliminares relativos à lógica abstrata, onde
se trata de apreciar o verdadeiro método filosófico, sem nenhuma aplicação a qualquer ordem de
fenômenos. E, de fato, os únicos princípios realmente gerais que, a este respeito, possamos estabelecer,
se reduzem necessariamente, como é fácil verificar nos mais célebres desses aforismos, a algumas
máximas incontestáveis, mas evidentes, tiradas da razão comum e que verdadeiramente nada de essencial
acrescentam às indicações que resultam, em todos os bons espíritos, de simples exercício espontâneo.
Quanto à maneira de adaptar essas regras universais às diversas ordens de nossas especulações positivas,
o que constituiria a verdadeira dificuldade e a utilidade real de tais preceitos lógicos, ela não poderia
comportar sólida apreciação senão após uma análise especial dos estudos correspondentes, de
conformidade com a natureza própria dos fenômenos considerados. A sã filosofia não separa, portanto,
nunca a Lógica da ciência, pois o método e a doutrina não podem ser bem julgados, em cada caso, senão
de acordo com as suas verdadeiras relações mútuas: não é mais possível, no fundo, dar à Lógica, assim
como à ciência, um caráter universal através de concepções puramente abstratas, independentes de todos
os fenômenos determinados; as tentativas deste gênero indicam ainda a secreta influência dó espírito
absoluto inerente ao regime teológico-metafísico.
36. Considerada agora sob o aspecto histórico, esta íntima solidariedade natural entre o gênio próprio da
verdadeira filosofia e o simples bom senso universal mostra a origem espontânea do espírito positivo,
que por toda a parte resultou, com efeito, de uma reação especial da razão prática sobre a razão teórica,
cujo caráter inicial foi sendo assim aos poucos modificado. Mas não era possível se operasse essa
transformação gradual simultaneamente, sobretudo com igual velocidade, nas diversas classes de
especulações abstratas, todas primitivamente teológicas, como já o reconhecemos. Este constante
impulso concreto não podia fazer o espírito positivo penetrar nelas a não ser segundo uma ordem
determinada de acordo com a complicação crescente dos fenômenos, como será diretamente explicado
mais adiante A positividade abstrata, necessariamente surgida nos mais simples estudos matemáticos, e
propagada em seguida por via de afinidade espontânea ou de imitação instintiva, não podia, pois,
oferecer a principio senão um caráter especial, e, mesmo, a muitos respeitos, empírico, que devia por
muito tempo dissimular, à maior parte dos seus promotores, quer sua incompatibilidade inevitável com a
filosofia inicial, quer, sobretudo, sua tendência radical para fundar novo regime lógico. Seus progressos
contínuos, sob o impulso crescente da razão vulgar, não podiam então determinar diretamente senão o
triunfo preliminar do espírito metafísico, destinado, por sua generalidade espontânea, a servir-lhe de
órgão filosófico durante os séculos decorridos entre a preparação mental do monoteísmo e sua plena
instalação social, após a qual, tendo o regime ontológico obtido todo o ascendente que sua natureza
comportava, logo se tornou opressivo ao progresso científico, que ele havia até então secundado.
Também o espírito positivo só pôde suficientemente manifestar sua própria tendência filosófica quando
foi enfim conduzido, por essa opressão, a lutar especialmente contra o espírito metafísico, com o qual
deverá parecer confundido durante muito tempo. Por esta razão a primeira fundação sistemática da

filosofia positiva não poderia remontar à época anterior à memorável crise na qual o conjunto do regime
ontológico começou a sucumbir em todo o ocidente europeu, sob o concurso espontâneo de dois
admiráveis impulsos mentais, um, científico, emanado de Kepler e Galileu, e outro, filosófico, devido a
Bacon e Descartes. A imperfeita unidade metafísica constituída no fim da Idade Média foi desde então
irrevogavelmente dissolvida, como a ontologia grega já destruíra para sempre a grande unidade
teológica, correspondente ao politeísmo. Depois desta crise verdadeiramente decisiva, o espírito positivo,
crescendo mais em dois séculos, do que lhe fora possível durante toda a sua longa carreira anterior, não
permitiu mais outra unidade mental a não ser a que resultava do seu próprio ascendente universal, pois
cada novo domínio sucessivamente por ele adquirido jamais podia retornar à Teologia ou à Metafísica,
em virtude da consagracão definitiva que essas aquisições crescentes achavam mais e mais na razão
vulgar. E só por tal sistematização que a sabedoria teórica concederá verdadeiramente à sabedoria prática
digno equivalente, em generalidade e em consistência, do serviço fundamental que dela recebeu, em
realidade e em eficácia, durante sua lenta iniciação gradual; porque as noções positivas obtidas nos dois
últimos séculos são, a falar verdade, muito mais preciosas como materiais ulteriores de uma nova
filosofia geral do que por seu valor direto e especial, pois a maior parte delas ainda não pôde adquirir seu
caráter definitivo, nem científico, nem mesmo lógico.
37. O conjunto da nossa evolução mental, e sobretudo o grande movimento realizado no ocidente
europeu, desde Descartes, e Bacon, não deixam, pois, de ora avante, outra saída possível senão a de
constituir enfim, após tantos preâmbulos necessários, o estado verdadeiramente normal da razão humana,
proporcionando ao espírito positivo a plenitude e a racionalidade que ainda lhe faltam, de maneira a
estabelecer, entre o gênio filosófico e o bom senso universal, uma harmonia que até aqui não havia
podido suficientemente existir. Ora, estudando estas duas condições simultâneas, de complemento e de
sistematização, que a ciência real deve hoje preencher para elevar-se à dignidade de verdadeira filosofia,
não se tarda em reconhecer que finalmente coincidem. De um lado, com efeito, a grande crise inicial da
positividade moderna só deixou fora do movimento científico propriamente dito as teorias morais e
sociais, que ficaram desde então em irracional insulamento, sob o estéril domínio do espírito
teológico-metafísico; era, pois, em trazê-las ao estado positivo que devia consistir, sobretudo em nossos
dias, a última prova do verdadeiro espírito filosófico, cuja extensão sucessiva a todos os outros
fenômenos fundamentais já se achava bastante esboçada. Mas, por outro lado, esta última expansão da
filosofia natural tendia espontaneamente a logo sistematizá-la, constituindo o único ponto de vista, quer
científico, quer lógico, que possa dominar o conjunto de nossas especulações reais, sempre
necessariamente redutíveis ao aspecto humano, isto é, social, único suscetível de ativa universalidade.
Tal é o duplo objetivo filosófico da elaboração fundamental, ao mesmo tempo especial e geral, que ousei
empreender na grande obra indicada no começo deste Discurso: os mais eminentes pensadores
contemporâneos julgam-na assim assaz realizada para já ter assentado as verdadeiras bases diretas da
completa renovação mental projetada por Bacon e Descartes, mas cuja execução decisiva estava
reservada ao nosso século.
II PARTE
SUPERIORIDADE SOCIAL DO ESPÍRITO POSITIVO
CAPÍTULO I
ORGANIZAÇÃO DA REVOLUÇÃO
38. Para que esta sistematização final das concepções, humanas seja hoje suficientemente caracterizada,

não basta apreciar seu destino teórico, como acabamos de fazer; é preciso também considerar aqui, de um
modo distinto, embora sumário, sua aptidão necessária para constituir a única saída intelectual que possa
comportar a imensa crise social desenvolvida, há um século, no conjunto do ocidente europeu, e
especialmente em França.
I. Impotência das escolas atuais
39. Enquanto se realizava gradualmente, durante os últimos séculos, a irrevogável dissolução da filosofia
teológica, o sistema político, que a tinha por base mental, sofria cada vez mais uma decomposição não
menos radical, igualmente presidida pelo espírito metafísico. Este duplo movimento negativo tinha como
órgãos essenciais e solidários, de um lado, as universidades a princípio emanadas, mas logo rivais, do
poder sacerdotal; de outro lado as diversas corporações de legistas, gradualmente hostis aos poderes
feudais: apenas, à medida que a ação crítica se disseminava, seus agentes, sem mudar de natureza,
tornavam-se mais numerosos e mais subalternos; de sorte que, no século XVIII, a atividade
revolucionária teve de passar, na ordem filosófica, dos doutores propriamente ditos aos simples literatos,
e, em seguida, na ordem política, dos juizes aos advogados. A Grande Crise final necessariamente
começou quando esta comum decadência, primeiro espontânea, depois sistemática, para a qual, aliás,
todas as classes da sociedade moderna haviam concorrido de modo direto, chegou a ponto de tornar
universalmente irrecusável a impossibilidade de conservar o regime antigo e a necessidade crescente de
uma ordem nova. Desde sua origem, esta crise tendeu sempre a transformar em vasto movimento
orgânico o movimento crítico dos cinco séculos anteriores, apresentando-se como destinado sobretudo a
operar diretamente a regeneração social, cujos preâmbulos negativos se achavam todos então
suficientemente realizados. Mas esta decisiva transformação, embora cada vez mais urgente, permaneceu
até aqui essencialmente impossível por falta de uma filosofia capaz de fornecer-lhe indispensável base
intelectual. Na própria época em que o conveniente remate da decomposição preliminar exigia o desuso
das doutrinas puramente negativas que a tinham dirigido, fatal ilusão, então inevitável, conduziu, pelo
contrário, a conceder de modo espontâneo ao espírito metafísico, único ativo durante esse longo
preâmbulo, a presidência geral do movimento de reorganização. Quando uma experiência plenamente
decisiva (3) evidenciou para sempre, aos olhos de todos, a completa impotência orgânica de semelhante
filosofia, a ausência de qualquer outra teoria não permitiu satisfazer logo às necessidades de ordem, que
já prevaleciam, senão por uma espécie de restauração passageira (4) deste mesmo sistema, mental e
social, cuja irreparável decadência havia ocasionado a crise. Enfim o desenvolvimento dessa reação
retrógrada determinou, em seguida, memorável manifestação que nossas lacunas filosóficas tornavam tão
indispensável quanto inevitável, a fim de demonstrar irrevogavelmente constituir o progresso, tanto como
a ordem, uma das condições fundamentais da civilização moderna.
40. O concurso natural destas duas experiências irrecusáveis, cujo renovamento se tornou agora tão
impossível como inútil, nos conduziu hoje a esta estranha situação em que nada de verdadeiramente
grande pode ser empreendido, em benefício da ordem ou do progresso, por falta de uma filosofia
realmente adaptada ao conjunto de nossas necessidades. Todo esforço sério de reorganização logo se
detém diante dos temores de retrogradação que deve naturalmente inspirar, numa época em que as idéias
de ordem ainda emanam, em essência, do tipo antigo, que se tornou justamente antipático às populações
atuais: da mesma forma as tentativas de aceleração direta da progressão política não tardam a ser
radicalmente entravadas pelas inquietações mui legítimas que devem suscitar sobre a iminência da
anarquia, enquanto as idéias de progresso permanecem sobretudo negativas. Como antes da crise, a luta
aparente acha-se, pois, empenhada entre o espírito teológico, reconhecido incompatível com o progresso,

que ele foi conduzido a negar dogmaticamente, e o espírito metafísico, o qual, depois de terminar, em
Filosofia, na dúvida universal, não pôde tender, em política, senão a constituir a desordem, ou um estado
equivalente de não-governo. Mas, de acordo com o sentimento unânime de sua comum insuficiência,
nem um, nem outro pode inspirar mais, de ora avante, aos governantes ou governados, profundas
convicções ativas. Seu antagonismo continua, pois, a alimentá-los mutuamente, sem que nenhum deles
possa comportar mais verdadeiro desuso, nem decisivo triunfo, porque nossa situação intelectual os torna
ainda indispensáveis para representar de algum modo as condições simultâneas, de um lado, da ordem, e,
de outro, do progresso, até que uma única filosofia as possa satisfazer igualmente, de modo a tornar
enfim tão inútil a escola retrógrada como a negativa, cada uma das quais é sobretudo destinada hoje a
impedir a completa preponderância da outra. Todavia, as inquietudes opostas, relativas a estes dois
domínios contrários, deverão naturalmente persistir ao mesmo tempo, enquanto durar este interregno
mental, como conseqüência inevitável da irracional cisão entre as duas faces inseparáveis do grande
problema social. Com efeito, cada uma das duas escolas, em virtude de sua exclusiva preocupação, não é
nem mesmo capaz de conter suficientemente, de ora em diante, as aberrações inversas de sua antagonista.
Apesar de sua tendência antianárquica, a escola teológica mostrou-se, em nossos dias, radicalmente
impotente para impedir o surto das opiniões subversivas, que, depois de se terem desenvolvido
especialmente durante sua principal restauração, amiúde são por ela propagadas, em conseqüência de
frívolos cálculos dinásticos. Assim também, qualquer que seja o instinto anti-retrógrado da escola
metafísica, ela não tem hoje mais toda a força lógica que o seu simples ofício revolucionário exigiria,
porque sua inconseqüência característica a obriga a admitir os princípios essenciais deste sistema, cujas
verdadeiras condições de existência ela incessantemente ataca.
41. Este deplorável oscilar entre duas filosofias opostas, que se tornaram igualmente vãs e não podem
extinguir-se senão ao mesmo tempo, devia suscitar uma espécie de escola intermediária, essencialmente
estacionária, destinada sobretudo a lembrar de modo direto o conjunto da questão social, proclamando
enfim como igualmente necessárias as condições fundamentais que insulavam as duas opiniões ativas.
Mas por falta de uma filosofia própria para realizar esta grande combinação do espírito de ordem com o
de progresso, este terceiro impulso permanece logicamente ainda mais impotente do que os dois outros,
porque sistematiza a inconseqüência, consagrando simultaneamente os princípios retrógrados e as
máximas negativas, a fim de poder mutuamente neutralizá-los. Longe de tender a terminar a crise, tal
disposição só poderia conseguir eternizá-la, opondo-se diretamente a toda verdadeira preponderância de
um sistema qualquer, se não fosse limitada a simples destino passageiro, para empiricamente satisfazer às
mais graves exigências de nossa situação revolucionária, até o advento decisivo das únicas doutrinas que
possam de ora avante convir ao conjunto de nossas necessidades. Mas assim concebido, este expediente
provisório se torna hoje tão indispensável como inevitável. Seu rápido ascendente prático, implicitamente
reconhecido pelos dois partidos ativos, torna patente cada vez mais, nas populações atuais, o
amortecimento simultâneo das convicções e das paixões anteriores, tanto retrógradas como críticas,
gradualmente substituídas por um sentimento universal, verdadeiro, embora confuso, da necessidade e
mesmo da possibilidade da conciliação contínua entre o espírito de conservação e o de melhoramento
igualmente peculiares ao estado normal da Humanidade. A tendência correspondente dos homens de
Estado a impedir hoje, tanto quanto possível, todo grande movimento político, acha-se além disso
conforme às exigências fundamentais de uma situação que, na realidade, só comportará instituições
provisórias, enquanto uma verdadeira filosofia geral não tiver suficientemente congregado as
inteligências. Sem que os poderes atuais o percebam, esta resistência instintiva concorre para facilitar a
verdadeira solução, incitando a transformar estéril agitação política em ativa progressão filosófica, de
modo a seguir enfim a marcha prescrita pela natureza própria da reorganização final, que se deve operar

primeiro nas idéias, para passar em seguida aos costumes e, por fim, às instituições. Tal transformação,
que já tende a prevalecer em França, deve naturalmente desenvolver-se cada vez mais por toda a parte,
visto a necessidade crescente em que se acham agora colocados nossos governos ocidentais de manter, a
grande custo, a ordem material no meio da desordem intelectual e moral, necessidade que deve a pouco e
pouco essencialmente absorver-lhes esforços diários, e conduzi-los a renunciar implicitamente a toda
séria presidência da reorganização espiritual, entregue assim, de ora avante, à livre atividade dos
filósofos que se mostrarem dignos de dirigi-la. Esta disposição natural dos poderes atuais está em
harmonia com a tendência espontânea das populações a uma aparente indiferença política, motivada pela
impotência radical das diversas doutrinas em voga, disposição que deve sempre persistir, enquanto os
debates políticos, por falta de impulso conveniente, continuarem a degenerar em vãs lutas pessoais, cada
vez mais miseráveis. Tal é a feliz eficácia prática que o conjunto da nossa situação revolucionária
proporciona de modo momentâneo a uma escola essencialmente empírica, que, sob o aspecto teórico, não
pode jamais produzir senão um sistema radicalmente contraditório, não menos absurdo e não menos
perigoso, em política, do que o é, em Filosofia, o ecletismo correspondente, inspirado também pela vã

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