martes, 27 de septiembre de 2011

Tercera parte

II. Estado metafísico ou abstrato
9. Por mais sumárias que tenham sido aqui estas explicações gerais sobre a natureza provisória e o
destino preparatório da única filosofia que convinha realmente à infância da Humanidade, elas permitem
contudo perceber sem dificuldade que o regime teológico difere muito profundamente, sob todos os
aspectos, do que veremos mais adiante corresponder à sua virilidade mental. Para que passagem gradual
de um a outro pudesse operar-se originariamente, assim no indivíduo, como na espécie tornou-se
indispensável o auxílio crescente de uma espécie de filosofia intermediária essencialmente limitada a este
ofício transitório. Tal é a participação especial do espírito metafísico propriamente dito na evolução
fundamental da nossa inteligência, que, antipática a toda mudança repentina, pode elevar-se assim, quase
insensivelmente, do estado puramente teológico ao francamente positivo, se bem que, no fundo, esta
situação equívoca se aproxime muito mais do primeiro do que do último. As especulações dominantes
conservaram no estado metafísico o mesmo caráter essencial de tendência ordinária para os
conhecimentos absolutos: apenas a solução sofreu nele notável transformação, própria a tornar mais fácil
o surto das concepções positivas. Como a Teologia, a Metafísica tenta de fato explicar sobretudo a
natureza íntima dos seres, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de produção dos
fenômenos: mas, em vez de empregar para isso os agentes sobrenaturais propriamente ditos, substitui-os
cada vez mais por entidades ou abstrações personificadas, cujo uso, verdadeiramente característico,
amiúde permitiu designá-la sob a denominação de Ontologia. É facílimo observar hoje tal maneira de
filosofar que, preponderante ainda em relação aos fenômenos mais complicados, oferece freqüentemente,
mesmo nas teorias mais simples e menos atrasadas, tantos traços apreciáveis de seu longo domínio.(1) A
eficácia histórica destas entidades resulta diretamente do seu caráter equívoco; porque, em cada um
desses seres metafísicos, inerentes ao corpo correspondente, sem se confundir com ele, o espírito pode, à
vontade, conforme esteja mais próximo ao estado teológico ou do positivo, ver uma verdadeira emanação
do poder sobrenatural ou uma simples denominação abstrata da fenômeno considerado. Não é mais então
a pura imaginação que domina e não é ainda a verdadeira observação; mas o raciocínio adquire nessa
fase grande extensão e prepara-se confusamente para o verdadeiro exercício científico Deve-se aliás
notar que sua parte especulativa se acha, a princípio, muito exagerada, em virtude desta obstinada
tendência a argumentar em vez de observar que, em todos os gêneros, caracteriza habitualmente o
espírito metafísico, mesmo em seus mais eminentes órgãos. Uma ordem de concepções tão flexível, que

não comporta absolutamente a consistência por tão longo tempo peculiar ao sistema teológico, deve,
além disso, atingir muito mais rapidamente a unidade correspondente, pela subordinação gradual das
diversas entidades particulares a uma única entidade geral, a Natureza, destinada a representar o fraco
equivalente metafísico da vaga ligação universal dos fenômenos operada pelo monoteísmo.
10. Para compreendermos melhor, sobretudo em nossos dias, a eficácia histórica de semelhante aparelho
filosófico, importa reconhecer que, por sua natureza, ele não é suscetível espontaneamente senão de uma
simples atividade crítica ou dissolvente, mesmo mental, e com mais forte razão social, sem poder jamais
organizar nada que lhe seja próprio. Radicalmente inconseqüente, este espírito equívoco conserva todos
os princípios fundamentais do sistema teológico, tirando-lhe, porém, cada vez mais o vigor e a fixidez
indispensáveis à sua autoridade efetiva; é nesta alteração que consiste, de fato e a todos os respeitos, sua
principal utilidade passageira, que se manifesta quando o regime antigo, por muito tempo progressivo,
para o conjunto da evolução humana, atinge inevitavelmente aquele grau de prolongamento abusivo que
tende a perpetuar de modo indefinido o estado de infância que ele dirigira antes com tanta felicidade. A
Metafísica é, pois, realmente, em essência, apenas uma espécie de teologia enervada pouco e pouco por
simplificações dissolventes, que lhe tiram espontaneamente o poder direto de impedir o desenvolvimento
das concepções positivas, conservando-lhe, contudo, a aptidão provisória para entreter um certo exercido
indispensável do espírito de generalização, até que este possa enfim receber melhor alimento. Em virtude
de seu caráter contraditório, o regime metafísico ou ontológico acha-se sempre na inevitável alternativa
de tender para uma vã restauração do estado teológico a fim de satisfazer às condições de ordem, ou de
impelir a uma situação puramente negativa para escapar ao império opressivo da Teologia. Esta oscilação
necessária, que só se observa agora em relação às teorias mais difíceis, existiu igualmente outrora a
respeito mesmo das mais simples, enquanto durou sua idade metafísica, em virtude da impotência
orgânica sempre peculiar a semelhante maneira de filosofar. Devemos sem temor assegurar que, se a
razão pública não a tivesse afastado desde muito tempo, no que concerne a certas noções fundamentais,
as dúvidas insensatas que ela suscitou, há vinte séculos, sobre a existência dos corpos exteriores,
subsistiriam ainda essencialmente, porque na verdade ela nunca as dissipou por nenhum argumento
decisivo. O estado metafísico pode, pois, ser afinal encarado como uma espécie de doença crônica
naturalmente peculiar à nossa evolução mental, individual ou coletiva, entre a infância e a virilidade.
11. Não remontando as especulações históricas quase nunca, entre os modernos, além dos tempos
politéicos o espírito metafísico deve parecer nelas quase tão antigo como o próprio espírito teológico,
pois que ele presidiu necessariamente, ainda que de modo implícito, à transformação primitiva do
fetichismo em politeísmo, a fim de substituir desde logo a atividade puramente sobrenatural, a qual,
retirada assim de cada corpo particular, devia deixar ai, de modo espontâneo, alguma entidade
correspondente. Como, todavia, esta primeira evolução teológica não pôde dar então lugar a nenhuma
discussão real, a interferência contínua do espírito ontológico só começou a tornar-se plenamente
característica na revolução seguinte, que operou a transformação do politeísmo em monoteísmo, da qual
ele foi o órgão natural. Sua influência crescente devia parecer orgânica a princípio, enquanto se achava
subordinada ao impulso teológico, mas sua natureza essencialmente dissolvente manifestou-se cada vez
mais, quando tentou estender gradualmente a simplificação da Teologia além mesmo do monoteísmo
vulgar, que constituía, sem nenhuma dúvida, a fase extrema realmente possível da filosofia inicial. Foi
assim que, durante os últimos cinco séculos, o espírito metafísico secundou negativamente o. surto
fundamental de nossa civilização moderna, decompondo pouco a pouco o sistema teológico, que se
tornara enfim retrógrado ao terminar a Idade Média, em virtude de achar-se essencialmente esgotada a
eficácia social do regime monotéico. Infelizmente depois de ter realizado, em cada gênero, esse oficio

indispensável, mas passageiro, a ação demasiado prolongada das concepções ontológicas tendeu sempre
a impedir igualmente qualquer outra organização real do sistema especulativo; de sorte que o mais
perigoso obstáculo à instalação final da genuína filosofia, resulta, com efeito, hoje desse mesmo espírito
que ainda se atribui muitas vezes o privilégio quase excluso das meditações filosóficas.
III. Estado positivo ou real
1o.- Seu principal caráter: a lei da subordinação constante da imaginação à observação
12. Esta longa sucessão de preâmbulos necessários conduz enfim nossa inteligência, gradualmente
emancipada, ao seu estado definitivo de positividade racional, que deve ser caracterizado aqui de um
modo mais especial do que os dois estados preliminares. Tendo tais exercidos preparatórios mostrado
espontaneamente a inanidade radical das explicações vagas e arbitrárias próprias à filosofia inicial, quer
teológica, quer metafísica, o espírito humano renuncia de ora em diante às pesquisas absolutas, que só
convinham à sua infância, e circunscreve os seus esforços ao domínio desde então rapidamente
progressivo, da verdadeira observação, única base possível dos conhecimentos realmente acessíveis,
criteriosamente adaptados às nossas necessidades efetivas. A lógica especulativa tinha até então
consistido em raciocinar, de modo mais ou menos sutil, segundo princípios confusos, que, não
comportando nenhuma prova suficiente, suscitavam sempre debates sem resultado. Ela reconhece de ora
em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não é estritamente redutível à simples
enunciação de um fato, particular ou geral, não nos pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os
princípios que ela emprega não passam em si mesmos de verdadeiros fatos, apenas mais gerais e mais
abstratos do que aqueles cuja ligação devem formar. Qualquer que seja, aliás, o modo racional ou
experimental, de os descobrir, é sempre da sua conformidade, direta ou indireta, com os fenômenos
observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica. A pura imaginação perde então de modo
irrevogável a sua antiga supremacia mental e subordina-se necessariamente à observação, de maneira a
constituir um estado lógico plenamente normal, sem deixar contudo de exercer, nas especulações
positivas, um papel tão capital como inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação, quer
definitiva, quer provisória. Em uma palavra, a revolução fundamental que caracteriza o estado viril de
nossa inteligência consiste em substituir por toda a parte a inacessível determinação das causas
propriamente ditas, pela simples pesquisa das leis, isto é, das relações constantes que existem entre os
fenômenos observados. Quer se trate dos menores ou dos mais sublimes efeitos, do choque e da
gravidade, quer do pensamento e da moralidade, deles não podemos conhecer realmente senão as
diversas ligações mútuas próprias à sua realização, sem nunca penetrar o mistério da sua produção.
2o. – Natureza relativa do espírito positivo
13. Nossas especulações positivas devem não só confinar-se essencialmente, sob todos os aspectos, à
apreciação sistemática dos fatos existentes, renunciando a descobrir sua primeira origem e o seu destino
final, mas importa também ainda compreender que este estudo dos fenômenos não deve tornar-se de
qualquer modo absoluto, mas permanecer sempre relativo à nossa organização e à nossa situação.
Reconhecendo sob este duplo aspecto, como são imperfeitos os nossos meios especulativos, vemos que,
longe de podermos estudar completamente qualquer existência efetiva, não poderemos sequer garantir a
possibilidade de conhecer, mesmo de modo muito superficial, todas as existências reais, das quais a
maior parte talvez nos deva escapar totalmente. Se a perda de um sentido importante basta para nos
ocultar uma ordem inteira de fenômenos naturais, é perfeitamente razoável pensar-se, reciprocamente,
que a aquisição de um novo sentido nos descobriria uma classe de fatos dos quais não temos agora

nenhuma idéia, a não ser que acreditemos que a acuidade dos sentidos, tão diferente entre os principais
tipos de animalidade, se acha elevada em nosso organismo no mais alto grau que possa exigir a
exploração total do mundo exterior, hipótese evidentemente gratuita e quase ridícula. Nenhuma ciência
pode manifestar melhor do que a Astronomia a natureza necessariamente relativa de todos os nossos
conhecimentos reais, pois não podendo realizar-se nela a investigação dos fenômenos senão através de
um único sentido, muito fácil é serem aí apreciadas as conseqüências especulativas de sua supressão ou
de sua simples alteração. Nenhuma astronomia poderia existir numa espécie cega, por mais inteligente
que a supuséssemos, nem mesmo se somente a atmosfera através da qual observamos os corpos celestes
permanecesse sempre e por toda a parte nebulosa. Todo este Tratado há de oferecer-nos freqüentes
ocasiões de apreciarmos espontaneamente, da maneira menos equívoca, esta íntima dependência em que
o conjunto de nossas condições próprias, tanto interiores, quanto externas, mantém inevitavelmente cada
um dos nossos estudos positivos.
14. Para bem caracterizar a natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais,
importa reconhecer, além disso, do ponto de vista mais filosófico, que, se quaisquer de nossas
concepções devem ser consideradas como outros tantos fenômenos humanos, tais fenômenos não são
simplesmente individuais, mas também e sobretudo, sociais, pois resultam, com efeito, de uma evolução
coletiva e contínua, cujos elementos e fases essencialmente se entrelaçam. Se, pois, sob o primeiro
aspecto, reconhecemos que nossas especulações devem depender sempre das diversas condições
essenciais de nossa existência individual, cumpre igualmente admitir, sob o segundo, que não se acham
menos subordinadas ao conjunto da progressão social de modo a não poderem comportar jamais a fixidez
absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei geral do movimento fundamental da Humanidade
consiste, a este respeito, em que nossas teorias tendem cada vez mais a representar exatamente os objetos
exteriores de nossas constantes investigações, sem que, contudo, a verdadeira constituição de cada um
deles possa, em caso algum, ser plenamente apreciada, pois a perfeição científica deve restringir-se a
aproximar-se desse limite ideal, tanto quanto o exijam nossas diversas necessidades reais. Este segundo
gênero de dependência, peculiar às especulações positivas, manifesta-se tão claramente como o primeiro
em todo o curso dos estudos astronômicos, quando consideramos, por exemplo, a série de noções cada
vez mais satisfatórias, obtidas desde a origem da geometria celeste, sobre a figura da Terra, sobre a forma
das órbitas planetárias, etc. Assim, posto que, de um lado, as doutrinas científicas sejam necessariamente
de natureza bastante móvel de modo a evitar qualquer pretensão ao absoluto, suas variações graduais não
apresentam, por outro lado, nenhum caráter arbitrário que possa motivar um ceticismo ainda mais
perigoso. Cada mudança sucessiva conserva, aliás, espontaneamente, nas teorias correspondentes, uma
aptidão indefinida para representar os fenômenos que lhes serviram de base, pelo menos enquanto não
haja necessidade de nelas ultrapassar o grau primitivo de precisão real.
3o. – Destino das leis positivas: previsão racional
15. Depois que se reconheceu unanimemente que a primeira condição fundamental de toda especulação
científica consiste em subordinar constantemente a imaginação à observação, uma viciosa interpretação
induziu amiúde a exagerado abuso desse grande princípio lógico, para fazer a ciência real degenerar em
uma espécie de acúmulo estéril de fatos incoerentes, sem oferecer essencialmente outro mérito senão o
da exatidão parcial. Importa, pois, bem compreender que o genuíno espírito positivo se acha tão afastado,
no fundo, do empirismo como do misticismo; é entre estas duas aberrações, igualmente funestas, que ele
deve caminhar: a necessidade de semelhante reserva contínua, tão difícil como importante, bastaria, além
disso, para verificar, de acordo com as nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve

ser maduramente preparada, e não pode, de forma alguma, convir ao estado nascente da Humanidade. É
nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, por mais
exatos e numerosos que sejam, só fornecem os materiais indispensáveis. Ora, considerando o destino
constante dessas leis, podemos dizer, sem nenhum exagero, que a verdadeira ciência, muito longe de ser
formada por simples observações, tende sempre a dispensar, tanto quanto possível, a exploração direta,
substituindo-a pela previsão racional, que constitui, a todos os respeitos, o principal caráter do espírito
positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos no-lo mostrará claramente semelhante previsão,
conseqüência necessária das relações constantes descobertas entre os fenômenos, jamais permitirá
confundir a ciência real com a vã erudição que acumula maquinalmente fatos sem aspirar a deduzi-los
uns dos outros. Este grande atributo de todas as nossas sãs especulações importa tanto à sua utilidade
efetiva como à sua própria dignidade; porque a exploração direta dos fenômenos ocorridos não seria
suficiente para permitir-nos modificar-lhes a realização, se não nos conduzisse a convenientemente
prevê-la. Assim, o genuíno espírito positivo consiste em ver para prever, em estudar o que é, a fim de
concluir o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais. (2)
4o. – Extensão universal do dogma fundamental da invariabilidade das leis naturais.
16. Este princípio fundamental de toda a filosofia positiva, que ainda está longe de ser suficientemente
estendido ao conjunto dos fenômenos, vai-se tornando, felizmente, desde três séculos, por tal forma
familiar, que, em virtude de hábitos absolutos anteriormente enraizados, se tem quase sempre
desconhecido até aqui a sua verdadeira origem, tentando-se pelo emprego de uma vã e confusa
argumentação metafísica representá-lo como uma espécie de noção inata, ou pelo menos primitiva,
quando certamente resultou de gradual e lenta indução, ao mesmo tempo coletiva e individual. Nenhum
motivo racional, independente de qualquer exploração exterior, nos sugere de antemão a invariabilidade
das relações físicas; pelo contrário, é incontestável que o espírito humano experimenta, durante sua longa
infância, um pendor muito vivo para desconhecê-la, mesmo nos seres onde uma observação imparcial
haveria de manifestá-la, se ele não fosse então arrastado por sua tendência necessária a referir todos os
acontecimentos, especialmente os mais importantes, a vontades arbitrárias. Existem, sem dúvida, em
cada ordem de fenômenos, alguns bastante simples e bastante familiares para que a sua observação
espontânea tenha sugerido sempre o sentimento confuso e incoerente de uma certa regularidade
secundária de sorte que o ponto de vista teológico não pôde nunca ser rigorosamente universal. Mas esta
convicção parcial e precária limita-se por muito tempo aos fenômenos menos numerosos e mais
subalternos, que ela não pode mesmo, de nenhum modo, preservar então das freqüentes perturbações
atribuídas à interferência preponderante dos agentes sobrenaturais. O princípio da invariabilidade das leis
naturais só começou realmente a adquirir certa consistência filosófica quando os primeiros trabalhos
verdadeiramente científicos puderam manifestar a sua exatidão essencial relativamente a uma ordem
inteira de grandes fenômenos, o que não podia resultar, de maneira satisfatória, senão da fundação da
astronomia matemática, durante os últimos séculos do politeísmo. Em virtude desta introdução
sistemática, este dogma fundamental tendeu, sem dúvida, a estender-se, por analogia, a fenômenos mais
complicados, antes mesmo de poderem suas leis próprias ser de qualquer modo conhecidas. Mas, além da
sua esterilidade efetiva, esta vaga antecipação lógica tinha então muito pouca energia para resistir
convenientemente à ativa supremacia mental que as ilusões teológico-metafísicas ainda conservavam.
Um primeiro esboço especial do estabelecimento das leis naturais em relação a cada ordem principal de
fenômenos tornou-se em seguida indispensável para proporcionar a semelhante noção a força inabalável
que começa a apresentar nas ciências mais avançadas. Esta convicção não poderia tornar-se mesmo
bastante firme, enquanto tal elaboração não fosse de fato estendida a todas as especulações fundamentais,

pois a incerteza deixada pelas mais complexas devia afetar, então, mais ou menos, cada uma das outras.
Não se pode desconhecer esta tenebrosa reação, mesmo hoje, quando, em virtude da ignorância ainda
habitual relativa às leis sociológicas, o princípio da invariabilidade das relações físicas se acha algumas
vezes sujeito a graves aliterações até nos estudos puramente matemáticos, nos quais vemos, por exemplo,
preconizar-se diariamente um pretenso cálculo das probabilidades, que supõe implicitamente a ausência
de toda lei real a respeito de certos acontecimentos, sobretudo quando o homem neles intervém. Mas,
quando essa universal extensão se acha convenientemente esboçada, condição agora preenchida pelos
espíritos mais avançados, este grande principio filosófico adquire logo uma plenitude decisiva, ainda que
as leis efetivas da maior parte dos casos particulares devam ficar sempre ignoradas; porque uma
irresistível analogia aplica então previamente a todos os fenômenos de cada ordem o que não foi
verificado senão para alguns dentre eles, contanto que tenham uma importância conveniente.
DESTINO DO ESPÍRITO POSITIVO
17. Depois de haver considerado o espírito positivo relativamente aos objetos exteriores de nossas
especulações, cumpre acabar de caracterizá-lo, apreciando também seu destino interior, para a satisfação
contínua de nossas próprias necessidades, quer sejam concernentes à vida contemplativa, quer à vida
ativa.
I. Constituição completa e estável da harmonia mental, individual e coletiva: sendo tudo referido à
Humanidade
18. Ainda que as necessidades puramente mentais sejam, sem dúvida, as menos enérgicas de todas as
inerentes à nossa natureza, sua existência direta e permanente é contudo incontestável em todas as
inteligências: elas constituem o primeiro estimulo indispensável aos nossos diversos esforços filosóficos,
muitas vezes atribuídos especialmente aos impulsos práticos, que, na verdade, os desenvolvem muito,
mas não os poderiam fazer surgir Estas exigências intelectuais, relativas, como todas as outras, ao
exercício regular das funções correspondentes, reclamam sempre uma feliz combinação de estabilidade e
de atividade, de onde resultam as necessidades simultâneas de ordem e de progresso, ou de ligação e
extensão. Durante a longa infância da Humanidade, só as concepções teológico-metafísicas podiam,
conforme nossas explicações anteriores, satisfazer provisoriamente a esta dupla condição fundamental,
ainda que de modo extremamente imperfeito. Mas quando a razão humana se acha bastante amadurecida
para renunciar francamente às especulações inacessíveis e circunscrever com sabedoria sua atividade ao
domínio verdadeiramente apreciável por nossas faculdades, a filosofia positiva proporciona-lhe, por
certo, uma satisfação muito mais completa, a todos os respeitos, e também mais real, destas duas
necessidades elementares. Tal é evidentemente, com efeito, sob este novo aspecto, o destino direto das
leis que ela descobre sobre os diversos fenômenos e da previsão racional delas inseparável. Em relação a
cada ordem de fenômenos, tais leis devem, a este respeito, ser distinguidas em duas modalidades,
conforme ligam por semelhança os que coexistem, ou por filiação os que se sucedem. Esta indispensável
distinção corresponde essencialmente, para o mundo exterior, à, que ele sempre nos oferece
espontaneamente entre os dois estados correlatos de existência e de movimento; donde resulta, em toda
ciência real, uma diferença fundamental entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica de qualquer
assunto. Os dois gêneros de relações contribuem igualmente para explicar os fenômenos, e conduzem de
modo semelhante a prevê-los, ainda que às leis de harmonia pareçam a princípio destinadas sobretudo à
explicação e as leis de sucessão à previsão. Quer se trate, com efeito, de explicar ou de prever, tudo se

reduz sempre a ligar: toda ligação real, estática ou dinâmica, descoberta entre dois fenômenos quaisquer,
permite ao mesmo tempo explicá-las e prever um pelo outro, porque a previsão científica, convém
evidentemente ao presente, e mesmo ao passado, assim como ao futuro, pois consiste sempre em
conhecer um fato independentemente de sua exploração direta, em virtude de suas relações com outros já
conhecidos. Assim, por exemplo, a assimilação demonstrada, entre a gravitação celeste e a gravidade
terrestre conduziu, em virtude das variações pronunciadas da primeira, a prever as fracas variações da
segunda, que a observação imediata não podia descobrir suficientemente, ainda que as tenha em seguida
confirmado; assim também em sentido inverso, a correspondência observada antigamente entre o período
elementar das marés e o dia lunar ficou explicada logo que se reconheceu ser em cada ponto a elevação
das águas resultante da passagem da lua pelo meridiano local. As nossas verdadeiras necessidades
lógicas convergem, pois, essencialmente para este comum destino: consolidar, tanto quanto possível, por
nossas especulações sistemáticas, a unidade espontânea do nosso entendimento, estabelecendo a
continuidade e a homogeneidade de nossas diversas concepções e fazendo-nos achar de novo a
constância no meio da variedade, de modo a satisfazer igualmente às exigências simultâneas da ordem e
do progresso. Ora, é evidente que, sob este aspecto fundamental, a filosofia positiva possui
necessariamente, para os espíritos bem preparados, uma aptidão muito superior à que jamais pôde
oferecer a filosofia teológico-metafísica. Considerando esta mesmo nos tempos do seu maior ascendente,
tanto mental como social, isto é, no estado politéico, a unidade intelectual achava-se então certamente
constituída de maneira muito menos completa e menos estável do que há de permitir em breve a
universal preponderância do espírito positivo, quando for habitualmente estendido às mais eminentes
especulações. Então, com efeito, reinará por toda a parte, sob diversos modos e em diferentes graus, esta
admirável constituição lógica, da qual só os estudos mais simples nos podem dar hoje justa idéia, em que
a ligação e a extensão, ambas plenamente garantidas, se acham, ademais, espontaneamente solidárias.
Este grande resultado filosófico não exige, aliás, outra condição necessária a não ser a obrigação
permanente de restringir todas as nossas especulações aos casos verdadeiramente acessíveis,
considerando estas relações reais, quer de semelhança, quer de sucessão, como capazes apenas de
constituir, para nós simples fatos gerais, que cumpre procurar reduzir ao menor número possível, sem
que o mistério de sua produção jamais possa ser penetrado de modo algum, conforme o caráter
fundamental do espírito positivo. Mas se somente esta constância efetiva das ligações naturais é, na
realidade, apreciável por nós, também só ela basta plenamente às nossas verdadeiras necessidades, quer
de contemplação, quer de direção.
19. Importa, contudo, reconhecer, em principio, que, sob o regime positivo, a harmonia de nossas
concepções se acha necessariamente limitada, até certo ponto, pela obrigação fundamental de sua
realidade, isto é, de uma suficiente conformidade com tipos independentes de nós. Em seu cego instinto
de ligação, nossa inteligência aspira a poder quase sempre ligar entre si dois fenômenos quaisquer,
simultâneos ou sucessivos; mas o estudo do mundo exterior demonstra, ao contrário, que muitas dessas
associações seriam puramente quiméricas, e que uma multidão de acontecimentos se realiza
continuamente sem nenhuma real dependência mútua; de sorte que este pendor indispensável precisa,
como nenhum outro, ser regulado por sã apreciação geral. Habituado, durante muito tempo, a uma
espécie de unidade de doutrina, por mais vaga e ilusória que devesse ser, sob o império das ficções
teológicas e das entidades metafísicas, o espírito humano, passando para o estado positivo, tentou logo
reduzir as diversas ordens de fenômenos a uma lei comum. Mas todos os ensaios realizados durante os
dois últimos séculos, para obter unia explicação universal da natureza, apenas conseguiram desacreditar
radicalmente tal empreendimento, de ora em diante abandonado às inteligências mal cultivadas. Uma
judiciosa explicação do mundo exterior o representou como sendo muito menos ligado do que o supõe e

o deseja o nosso entendimento, predisposto, por sua própria fraqueza, a multiplicar relações favoráveis e
à sua marcha, e, sobretudo, ao seu repouso. Não somente as seis categorias fundamentais que
distinguiremos mais adiante entre os fenômenos naturais, não poderiam ser todas certamente submetidas
a uma única lei universal, como também podemos assegurar agora que a unidade de expl1cação, ainda
procurada por tantos espíritos sérios em relação a cada uma delas, tomada à parte, nos é finalmente
interdita, mesmo neste domínio muito mais restrito. A Astronomia fez nascer, sob este aspecto,
esperanças demasiado empíricas, que nunca se poderiam realizar para os fenômenos mais complicados,
nem mesmo quanto à Física propriamente dita, cujos cinco ramos principais ficarão sempre distintos
entre si, apesar de suas incontestáveis relações. Freqüentemente nos achamos dispostos a exagerar muitos
inconvenientes lógicos dessa dispersão necessária, porque apreciamos mal as vantagens reais que
apresenta a transformação das induções em deduções. Todavia cumpre reconhecer francamente esta
impossibilidade direta de reduzir tudo a uma única lei positiva como grave imperfeição, conseqüência
inevitável da condição humana, que nos força a aplicar uma inteligência muito fraca a um universo
complicadíssimo.
20. Mas esta incontestável necessidade, que importa reconhecer, a fim de evitar vão desperdício de forças
mentais, não impede de modo algum a ciência real de comportar, sob outro aspecto, suficiente unidade
filosófica, equivalente às que a Teologia ou Metafísica constituíram passageiramente, e, aliás, muito
superior, tanto em estabilidade como em plenitude. Para perceber-lhe a possibilidade e apreciar-lhe a
natureza, é preciso recorrer, em primeiro lugar, à luminosa distinção geral esboçada por Kant entre os
dois pontos de vista objetivo e subjetivo, peculiares a qualquer estudo. Considerada sob o primeiro
aspecto, isto é, quanto ao destino exterior das nossas teorias, como exata representação do mundo real,
nossa ciência não é, certamente, suscetível de plena sistematização, em virtude da inevitável diversidade
entre os fenômenos fundamentais. Neste sentido não devemos procurar outra unidade senão a do método
positivo encarado em seu conjunto, sem pretender verdadeira unidade científica, mas somente a
homogeneidade e a convergência das diversas doutrinas. O mesmo não acontece sob o outro aspecto, isto
é, quanto à origem interior das teorias humanas, encaradas como resultados naturais de nossa evolução
mental, ao mesmo tempo individual e coletiva, destinadas à satisfação normal de nossas próprias
necessidades, sejam físicas, intelectuais ou morais. Referidos assim, não ao universo, mas ao homem, ou
antes à Humanidade, nossos conhecimentos reais tendem, ao revés, com evidente espontaneidade, para
uma completa sistematização, tanto científica como lógica. Não devemos mais então conceber, no fundo,
senão uma única ciência, a ciência humana, ou mais exatamente, social, da qual nossa existência
constitui ao mesmo tempo o princípio e o fim, e na qual vem naturalmente fundir-se o estudo racional do
mundo exterior, sob o duplo titulo de elemento necessário e de preâmbulo fundamental, igualmente
indispensável quanto ao método e quanto à doutrina, como explicarei mais adiante. É só assim que os
nossos conhecimentos positivos podem formar um verdadeiro sistema, de modo a oferecerem um caráter
plenamente satisfatório. A própria Astronomia, ainda que objetivamente mais perfeita do que os outros
ramos da filosofia natural, em razão da sua simplicidade superior, não é verdadeiramente tal senão sob
este aspecto humano, porque o conjunto deste Tratado fará sentir com clareza que ela deveria, pelo
contrário, ser julgada muito imperfeita se a referíssemos ao universo e não ao homem; pois todos os
nossos estudos reais são ai por força limitados ao nosso mundo, que, entretanto, constitui apenas um
elemento mínimo do universo, cuja exploração nos é essencialmente interdita, Tal é, pois, a disposição
geral que deve enfim. prevalecer na genuína filosofia positiva, não só quanto às teorias diretamente
relativas ao homem e à sociedade, mas também em relação às que concernem aos mais simples
fenômenos, os mais afastados, em aparência desta comum apreciação: conceber todas as nossas
especulações como produtos de nossa inteligência, destinados a satisfazer às nossas diversas

necessidades essenciais, sem se afastarem nunca do homem senão para melhor voltarem a ele, depois de
haver sido feito o estudo dos outros fenômenos na medida em que o seu conhecimento se torna
indispensável, quer para desenvolver nossas forças, quer para apreciar nossa natureza e nossa condição.
Pode-se desde então perceber como a noção preponderante da Humanidade deve necessariamente
constituir, no estado positivo, uma plena sistematização mental, pelo menos equivalente à que afinal
comportará a idade teológica com a grande concepção de Deus, tão fracamente substituída em seguida, a
este respeito, durante a transição metafísica, pelo vago pensamento da Natureza.
21. Depois de haver caracterizado a aptidão espontânea do espírito positivo para estabelecer a unidade
final do nosso entendimento, torna-se fácil completar esta explicação fundamental, estendendo-a do
indivíduo à espécie. Esta indispensável extensão era, até agora, essencialmente impossível aos filósofos
modernos, que, não tendo podido libertar-se assaz do estado metafísico, nunca se colocaram no ponto de
vista social, único suscetível contudo de uma plena realidade, tanto científica como lógica, pois o homem
não se desenvolve isoladamente, mas coletivamente. Afastando, como radicalmente estéril, ou antes
muitíssimo prejudicial, esta viciosa abstração de nossos psicólogos ou ideólogos, a tendência sistemática
que acabamos de apreciar no espírito positivo adquire enfim toda a sua importância, porque mostra nele
o verdadeiro fundamento filosófico da sociabilidade humana, tanto pelo menos quanto esta depende da
inteligência, cuja capital influência, ainda que de nenhum modo exclusiva, não poderia ser ai constatada.
É, de fato, o mesmo problema humano, com diversos graus de dificuldade, quer se trate de constituir a
unidade lógica de cada entendimento isolado ou de estabelecer uma convergência duradoura entre
entendimentos distintos, cujo número não poderia essencialmente influir senão sobre a rapidez da
operação. Também, em qualquer tempo, aquele que pôde tornar-se bastante conseqüente adquiriu, por
isso mesmo, a faculdade de reunir gradualmente os outros, em virtude da semelhança fundamental de
nossa espécie. A filosofia teológica não foi, durante a infância da Humanidade, a única própria para
sistematizar a sociedade senão por ser então a fonte exclusiva de certa harmonia mental. Se, pois, ao
espírito positivo passou irrevogavelmente, de ora avante, o privilégio da coerência lógica, o que não
pode, a sério, ser contestado, cumpre desde então nele reconhecer também o único princípio efetivo desta
grande comunhão intelectual que se torna a base necessária de toda verdadeira associação humana,
quando convenientemente ligada às duas outras condições fundamentais uma suficiente conformidade de
sentimentos e uma certa convergência de interesses. A deplorável situação filosófica do escol da
Humanidade bastaria hoje para dispensar, a este respeito, qualquer discussão, pois nele não se observa
mais verdadeira comunidade de opiniões senão sobre assuntos já reduzidos a teorias positivas, os quais,
infelizmente, não são, antes muito pelo contrário, os mais importantes. Uma apreciação direta e especial,
que seria deslocada aqui, faz, aliás, perceber facilmente que só a filosofia positiva pode realizar a pouco e
pouco este nobre projeto de associação universal, que o catolicismo esboçou prematuramente na Idade
Média, mas que era, no fundo, necessariamente incompatível, como a experiência plenamente o
demonstra, com a natureza teológica da sua filosofia, a qual instituía uma coerência lógica muito fraca de
modo a comportar semelhante eficácia social.
II. Harmonia entre a ciência e a arte, entre a teoria positiva e a prática.
22. Achando-se assaz e definitivamente caracterizada a aptidão fundamental do espírito positivo em
relação à vida especulativa, só nos resta apreciá-la também em relação à vida ativa, que, sem poder
mostrar nele nenhuma propriedade verdadeiramente nova, manifesta, de maneira muito mais completa e
sobretudo mais decisiva, o conjunto dos atributos que lhe temos reconhecido. Ainda que as concepções
teológicas tenham sido, mesmo sob este aspecto, por muito tempo necessárias a fim de despertar e

sustentar o ardor do homem pela esperança indireta de uma espécie de império ilimitado, foi, entretanto,
a este respeito que o espírito humano testemunhou primeiro sua predileção final pelos conhecimentos
reais. E, com efeito, sobretudo como base racional da ação da Humanidade sobre o mundo exterior que o
estudo positivo da natureza começa hoje a ser universalmente estimado, Nada é mais criterioso, no
fundo, do que este julgamento vulgar e espontâneo; porque tal destino, quando convenientemente
apreciado, lembra necessariamente, num resumo muito feliz, todos os grandes caracteres do verdadeiro
espírito filosófico, não só quanto à racionalidade, mas também quanto à positividade. A ordem natural
que resulta, em cada prático, do conjunto das leis dos fenômenos correspondentes, deve evidentemente
ser-nos primeiro bem conhecida para que possamos ou modificá-la para nossa vantagem, ou, pelo menos,
adaptar-lhe nossa conduta, se for de todo impossível intervirmos nela, como se dá em relação aos
acontecimentos celestes. Tal aplicação é especialmente própria para tornar familiarmente apreciável a
previsão racional que vimos constituir, sob todos os aspectos, o principal caráter da verdadeira ciência,
porque a pura erudição, onde os conhecimentos, reais mas incoerentes, consistem em fatos e não em leis,
não podia evidentemente, bastar para dirigir nossa atividade: seria supérfluo insistir aqui sobre uma
explicação tão pouco contestável. É verdade que a exorbitante preponderância concedida agora aos
interesses materiais conduziu demasiadas vezes o homem a compreender esta ligação necessária de modo
a comprometer gravemente o futuro da ciência, pois tendeu a reduzir as especulações positivas somente
às pesquisas de utilidade imediata. Mas esta cega disposição resulta apenas da maneira falsa e estreita de
conceber a grande relação entre a ciência e a arte, por não terem uma e outra sido apreciadas com
bastante profundeza. O estudo da Astronomia é o mais próprio de todos para corrigir semelhante
tendência, seja porque sua simplicidade superior permite perceber melhor seu conjunto, seja em virtude
da espontaneidade mais íntima das aplicações correspondentes que, há vinte séculos, se acham aí
evidentemente ligadas às mais sublimes especulações, como este Tratado o fará claramente compreender.
Mas importa sobretudo reconhecer bem, a este respeito, que a relação fundamental entre a ciência e a arte
não pôde até agora ser convenientemente concebida, mesmo pelos melhores espíritos, o que é uma
conseqüência necessária da extensão insuficiente da filosofia natural, que permanece ainda estranha às
pesquisas mais importantes e mais difíceis, as que concernem diretamente à sociedade humana. Com
efeito, a concepção racional da ação do homem sobre a natureza ficou assim essencialmente limitada ao
mundo inorgânico, de onde resultaria uma excitação científica demasiado imperfeita. Quando esta
imensa lacuna tiver sido suficientemente preenchida, como começa a sê-lo hoje, poder-se-á sentir a
importância fundamental deste grande destino prático para estimular habitualmente, e muitas vezes
mesmo para dirigir melhor as mais eminentes especulações, sob a única condição normal de uma
constante positividade. E, de fato, a arte não será mais então unicamente geométrica, mecânica ou
química, etc., mas também, e sobretudo, política e moral, devendo a principal ação exercida pela
Humanidade consistir, sob todos os aspectos, no melhoramento contínuo da sua própria natureza,
individual ou coletiva, entre os limites que o conjunto das leis reais indica, como em qualquer outro caso.
Quando esta solidariedade espontânea da ciência com a arte puder ser assim convenientemente
organizada, não se pode duvidar que, muito longe de tender a restringir de qualquer modo as sãs
especulações filosóficas, ela lhes designará, ao contrário, um destino final muito superior ao seu alcance
efetivo, se se não tivesse reconhecido previamente, como princípio geral, a impossibilidade de jamais
tornar a arte puramente racional, isto é, de elevar nossas previsões teóricas ao verdadeiro nível de nossas
necessidades práticas. Mesmo nas artes mais simples e mais perfeitas, torna-se constantemente
indispensável um desenvolvimento direto e espontâneo, sem que as indicações científicas o possam, em
caso algum, substituir completamente. Por mais satisfatórias, por exemplo, que se tenham tornado nossas
previsões astronômicas, sua previsão é ainda, e será provavelmente sempre, inferior às nossas justas
exigências práticas, como terei amiúde ocasião de indicar.

23. Esta tendência espontânea para constituir diretamente uma inteira harmonia entre a vida ativa e a
especulativa deve ser considerada finalmente como o privilégio mais feliz do espirito positivo, pois
nenhuma outra das suas propriedades pode manifestar-lhe tão bem o verdadeiro caráter e facilitar-lhe o
ascendente real. Nosso ardor especulativo acha-se assim sustentado, e mesmo dirigido, por poderoso
estímulo contínuo, sem o qual a inércia natural de nossa inteligência a disporia muitas vezes a satisfazer
suas fracas necessidades teóricas por explicações fáceis, mas insuficientes, ao passo que o pensamento da
ação final lembra sempre a condição de conveniente previsão. Ao mesmo tempo este grande destino
prático completa e circunscreve, em cada caso, o preceito fundamental relativo ao descobrimento das leis
naturais, tendendo a determinar, de acordo com as exigências da aplicação, o grau de precisão e de
extensão de nossa previdência racional, cuja exata medida não poderia, em geral, ser fixada de outro
modo. Se, por um lado, a perfeição científica não pode ultrapassar esse limite, abaixo do qual, ao
contrário, há de realmente ficar sempre, por outro lado, se o transpusesse, cairia logo numa apreciação
demasiado minuciosa, não menos quimérica do que estéril, que finalmente comprometeria mesmo todos
os fundamentos da verdadeira ciência, pois nossas leis não podem nunca representar os fenômenos senão
com uma certa aproximação, além da qual seria tão perigoso como inútil levar nossas pesquisas. Quando
esta relação fundamental da ciência com a arte for convenientemente sistematizada, ela tenderá algumas
vezes, sem dúvida, a desacreditar tentativas teóricas cuja esterilidade radical seria incontestável; mas,
longe de oferecer qualquer inconveniente real, essa inevitável disposição se tomará desde então muito
favorável aos nossos verdadeiros interesses especulativos, impedindo o vão desperdício de nossas fracas
forças mentais que resulta muito freqüentemente hoje de cega especialização. Em sua evolução
preliminar o espírito positivo teve de apegar-se por toda a parte a quaisquer questões que se lhe tornavam
acessíveis, sem indagar muito de sua importância final, que resultava de sua relação própria com um
conjunto que, a princípio, não podia ser percebido. Mas este instinto provisório sem o qual teria faltado
muitas vezes o alimento conveniente à ciência, deve acabar por subordinar-se habitualmente a uma justa
apreciação sistemática, logo que a plena madureza do estado positivo tiver permitido perceber as
verdadeiras relações de cada parte com o todo, de modo a oferecer constantemente um largo destino às
mais eminentes pesquisas, evitando, entretanto, toda especulação pueril.
24. A propósito desta íntima harmonia entre a ciência e a arte, importa enfim notar especialmente a feliz
tendência que dela resulta para desenvolver e consolidar o ascendente social da sã filosofia, como
conseqüência espontânea da preponderância crescente que a vida industrial obtém evidentemente na
civilização moderna. A filosofia teológica só podia realmente convir a essa fase necessária de
sociabilidade preliminar, em que a atividade humana deve ser essencialmente militar, a fim de preparar
gradualmente uma associação normal e completa, a princípio impossível, conforme a teoria histórica que
alhures estabeleci. O politeísmo adaptava-se especialmente ao sistema de conquista da antigüidade e o
monoteísmo à organização defensiva da Idade Média. Fazendo prevalecer cada vez mais a vida
industrial, a sociabilidade moderna deve, pois, secundar poderosamente a grande evolução mental que
eleva hoje definitivamente nossa inteligência do regime teológico ao positivo. Esta tendência diária e
ativa ao melhoramento prático da condição humana é necessariamente pouco compatível com as
preocupações religiosas, sempre relativas, sobretudo no monoteísmo, a um destino muito diferente; mas,
além disso, semelhante atividade é de natureza a suscitar finalmente uma oposição universal, tão
profunda como espontânea, a toda filosofia teológica. Por um lado, com efeito, a vida industrial é, no
fundo, diretamente contrária a todo otimismo providencial, pois supõe necessariamente que a ordem
natural é tão imperfeita, que exige sempre a contínua intervenção humana, ao passo que a Teologia não
admite logicamente outro meio de modificá-la a não ser apelando para o apoio sobrenatural. Em segundo
lugar, esta oposição, inerente ao conjunto de nossas concepções industriais, se reproduz, continuamente,

sob formas muito variadas, na realização especial de nossas operações, nas quais devemos encarar o
mundo exterior, não como dirigido por quaisquer vontades, mas como submetido a leis, suscetíveis de
nos permitir uma suficiente previsão, sem a qual nossa atividade prática não comportaria nenhuma base
racional. Assim, a mesma correlação básica, que torna a vida industrial tão favorável ao ascendente
filosófico do espírito positivo, lhe imprime, sob outro aspecto, uma tendência antiteológica, mais ou
menos pronunciada, mas cedo ou tarde inevitável, quaisquer que tenham sido os esforços contínuos da
sabedoria do sacerdócio para conter ou temperar o caráter antiindustrial da primitiva filosofia, com a qual
a vida guerreira era a única suficientemente conciliável. Tal é a íntima solidariedade que faz todos os
espíritos modernos, mesmo os mais grosseiros e os mais rebeldes, participarem involuntariamente, desde
muito tempo, da substituição gradativa da antiga filosofia teológica por uma filosofia plenamente
positiva, única suscetível, de ora em diante, de verdadeiro ascendente social.
III. Incompatibilidade final da ciência com a Teologia
25. Somos assim conduzidos a completar enfim a apreciação direta do genuíno espírito filosófico por
uma última explicação que,. embora sendo sobretudo negativa, se torna, na realidade, indispensável hoje
para acabar de caracterizar suficientemente a natureza e as condições da grande renovação mental agora
necessária ao escol da Humanidade, manifestando diretamente a incompatibilidade final das concepções
positivas com quaisquer opiniões teológicas, tanto monotéicas como politéicas ou fetíchicas. As diversas
considerações indicadas neste Discurso já demonstraram implicitamente a impossibilidade de qualquer
conciliação duradoura entre as duas filosofias, seja quanto ao método ou quanto à doutrina;, de modo que
toda incerteza a este respeito pode ser, aqui facilmente dissipada. Sem dúvida a ciência e a Teologia não
se acham a princípio em oposição aberta, pois se não propõem as mesmas questões; e foi isto que
permitiu durante muito tempo o desenvolvimento parcial do espírito positivo, apesar do ascendente geral
do espírito teológico, e, mesmo, a muitos respeitos, sob a sua tutela preliminar. Mas quando a
positividade racional, limitada a princípio, às humildes pesquisas ,matemáticas, que a Teologia tinha
desdenhado especialmente empreender, começou a estender-se ao estudo direto da natureza, sobretudo
pelas teorias astronômicas a colisão tornou-se inevitável, ainda que latente, em virtude do contraste
fundamental, ao mesmo tempo científico e lógico, desde então progressivamente desenvolvido entre as
duas ordens de idéias. Os motivos lógicos em virtude dos quais a ciência se interdiz de modo radical os
misteriosos problemas de que se ocupa essencialmente a Teologia, são de natureza a desacreditar cedo ou
tarde, entre os bons espíritos, especulações que não se evitam senão por serem necessariamente
inacessíveis à razão humana. Além disso, a prudente reserva com que o espírito positivo procede,
estudando pouco a pouco assuntos muito fáceis, deve fazer apreciar indiretamente a louca temeridade do
espírito teológico a respeito das mais difíceis questões. Todavia é especialmente pelas doutrinas que a.
incompatibilidade das duas filosofias deve manifestar-se na maior parte das inteligências, muito pouco
interessadas, de ordinário, nas simples dissidências de método, ainda que estas sejam, no fundo, as mais
graves, por serem a fonte necessária de todas as outras. Ora, sob este novo aspecto, não se pode deixar de
reconhecer a oposição radical das duas ordens de concepções, onde os mesmos fenômenos são ora
atribuídos a vontades diretoras, ora reduzidos a leis invariáveis. A imobilidade irregular, naturalmente
própria a toda idéia de vontade, não pode de modo algum concordar com a constância das relações reais.
Também à medida que as leis físicas foram conhecidas, o império das vontades sobrenaturais achou-se
cada vez mais restringido, sendo sempre consagrado sobretudo aos fenômenos cujas leis permaneciam
ignoradas. Tal incompatibilidade torna-se diretamente evidente, quando se opõe a previsão racional, que
constitui o principal caráter da verdadeira ciência, à adivinhação por meio da revelação especial, que a
Teologia deve representar como o único meio legítimo de conhecer o futuro. É verdade que o espírito

positivo, chegado à sua completa madureza, tende também a subordinar a própria vontade a verdadeiras
leis, cuja existência é, com efeito, tacitamente suposta pela razão vulgar, pois os esforços práticos para
modificar e prever as vontades humanas não poderiam ter sem isto nenhum fundamento razoável. Mas
semelhante noção não conduz de modo algum a conciliar as duas maneiras opostas segundo as quais a
ciência e a Teologia concebem necessariamente a direção efetiva dos diversos fenômenos. Tal previsão e
a conduta que dela resulta exigem, de fato, evidentemente um profundo conhecimento real do ser no seio
do qual as vontades se produzem. Ora, este fundamento preliminar só poderia provir de um ser pelo
menos igual, julgando assim por semelhança; não o podemos conceber da parte de um inferior, e a
contradição aumenta com a desigualdade de natureza. Também a Teologia sempre repeliu a pretensão de
penetrar de qualquer modo os desígnios da Providência, assim como seria absurdo supor aos animais
inferiores a faculdade de prever as vontades do homem ou dos outros animais superiores. É, contudo, a
esta louca hipótese que seríamos necessariamente conduzidos para afinal conciliar o espírito teológico
com o positivo.

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